#32: A carta do Carteiro

O Carteiro
carteiro
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4 min readApr 22, 2021

Cara S., caro R.,

Olá. Sou o carteiro. Não o carteiro bêbado da sua rua, R., muito menos aquele que sua avó chamaria para passar o Natal na sua casa, S., apesar de que eu gostaria de ser convidado. Sou o Carteiro. As suspeitas estavam certas, de fato, as cartas de vocês têm sido desviadas. Como carteiro, não posso deixar de entregar uma carta de um remetente a um destinatário, ainda que eles não existam, ainda que sejam apenas uma invenção. O que tenho feito, queridos, não é nada mais nada menos do que divulgar uma cópia, uma ideia, uma xerox borrada das cartas que vocês cuidadosamente depositam no envelope, selam e enviam um ao outro.

A primeira vez que fiz isso foi há um ano, com uma carta sua sobre Piglia, R. Devo confessar que senti que cometia um crime. Estava eu invadindo a vida privada de dois nomes? De duas letras? E se vocês descobrissem? Eu perderia meu emprego, e não posso me dar esse luxo, ainda mais hoje em dia. Por isso tive a seguinte ideia: eu reorganizaria algumas frases, trocaria certas palavras e, portanto, entregaria aos leitores uma outra carta, uma carta nova, uma carta que até então não existia. A carta então seria minha, não sua, e só existiria quando meus (nossos) leitores rasgassem o envelope que a guarda e se decidissem por lê-la, resolvendo ficar até o final.

Contudo, S. e R., hoje concluí que era hora de escrever para vocês. Já faz um tempo que tenho recebido respostas, mensagens de pessoas querendo saber do próximo capítulo, pedindo que adiante as entregas semanais (alguns pensam que tudo não passa de uma novela; outros, que é um canal de recomendação de livros e filmes). Tem gente também insistindo que não sabe como começou a receber essas cartas “tão pessoais”, dizem que não desejam saber mais de nada, que S. e R. (não vocês, os que eu inventei) só escrevem lamentos e que disso elas não precisam. Vejam:

“Sr. Carteiro, assisti ao filme indicado na carta #6, mas não entendi nada, Y tu mamá también não tem nada a ver com Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, o primeiro filme é sobre uma mulher que ama demais a vida, o segundo é um clássico não reconhecido. Por favor, transmita meu recado a S ou a R, quem quer que tenha escrito aquela carta!”

ou então

“Prezado Carteiro, como você tem entregado essas cartas? Nunca vi você se aproximar da minha caixa de correio. Quero dizer, eu nem sei se ainda tenho caixa de correio, faz alguns anos que a desativei. Quero dizer, ela está lá, virada de cabeça para baixo. Isso indica que não quero me comunicar, não é? Se sim, terei demolido toda a engenharia da comunicação. De qualquer modo, por que eu? Quero dizer, não entendo como ou por que comecei a receber essas cartas com histórias que pouco me interessam. Quero dizer, não são ruins, fico curioso para ver o que esses dois tanto têm para dizer um para o outro toda semana, mas, por quê?”

Uma coisa bastante engraçada é que algumas pessoas escrevem insistindo que sabem o nome de vocês dois. Penso toda semana: de onde será que tiraram isso? Não devem supor que, além de entregar as cartas, o carteiro também as escreva!

“Senhor Carteiro, por que esse carimbo na parte de fora das cartas? E por que, toda vez, um nome diferente nos espaços que indicam o destinatário? Recebo cartas para Ricardo, Rodolfo, Raiane, Rafael, Rita, Renato, Robson, Reinaldo, Raíssa, Rebeca, Rachel, entre outros nomes radicalmente retumbantes. Por outro lado (do outro lado da rua, onde vivem os moradores de casas com números ímpares), minha vizinha recebe as mesmas cartas, endereçadas a Samanta, Samuel, Samara, Setúbal, Soraia, Sandro, Sandrinha, Solange, Sérgio, sabe? Suspeito, como tantos outros aqui no bairro, porém, que os remetentes na verdade se chamem Rodrigo e Stéphanie. Poderia, por favor, confirmar?”

Queridos, a essa mensagem eu respondi: não concordo e nem discordo. Entreguei ao morador uma carta assinada por um certo Rabanete, endereçada a alguma Sobremesa. Como digitam por aí: rs.

Nas últimas semanas, algumas pessoas falaram comigo sobre a saudade dos amigos e do Sesc, S., e isso por causa da sua carta sobre suas viagens. Substituí as cidades citadas por unidades do Sesc de São Paulo que gosto, achando que seria uma boa ideia — e aparentemente foi, comovi algumas pessoas. Assim como quando mexi em uma carta de R. sobre a amizade de vocês dois, a 27. Pensei em todos os filmes e livros sobre amizade que vi e li e complementei as frases de R. com exemplos de aventuras que pareciam universais. Tento fazer isso nas cartas, deixá-las universais, apesar de pessoais. Será que tenho conseguido?

É uma pena que vocês dois não possam me responder isso, porque ambos só sabem das cartas que vocês escrevem, não das que eu envio. De qualquer modo, espero que alguém possa responder. Há um tempo tenho pedido nas cartas que as pessoas me respondam e tem dado certo, espero que continuem. Fiz um e-mail, editoracarteiro@gmail.com, para ver se falam comigo. Afinal, vocês sempre têm alguém para quem escrever, trocar cartas. E eu? Troco com quem?

Não vou pedir desculpas pelo inconveniente. Não é inconveniente, nem crime. De presente de um ano para vocês quis abrir meu coração nesta carta. A trigésima segunda que escrevo, mas a primeira que assino.
Por favor, não se acanhem, continuem escrevendo. Mantenham as cartas e meu emprego. Como estamos, ninguém se compromete.

Cordialmente,
Carteiro.

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