#37: uma astróloga para me explicar a vida

stéphanie
carteiro
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4 min readMay 23, 2021

r.,

bom saber que você é r. para mim e outra letra para as outras pessoas. de alguma forma, você é mais especial por isso, por ser r. unicamente comigo. assim eu também me sinto especial. saiba que eu sou s. para você e s. para todos os outros, não que haja muitos outros. na verdade, não há nenhum outro. é mais ou menos como o sentimento que você descreveu na sua carta, sobre seu casal de amigos: a necessidade de confiança. eu sou s. para você e para todos os outros porque quero que você e todos os outros confiem em mim. confiem, aliás, no fato de que não há outros.

já que você comentou sobre seu amigo e o problema dele em confiar no namorado, me sinto à vontade para opinar sobre o caso. é um hábito comum comentar a vida dos outros, o amor dos outros, a história dos outros. é inusitado, porém, comentar para uma terceira pessoa, à frente das tantas outras que, presume-se, leem esta carta nesse momento. mas quem não gosta de uma fofoca? de qualquer modo, talvez nesse caso não seja tão fofoca, já que o amor é uma intermitência estúpida mas universal. todos passam por isso. e eu entendo seu amigo: eu também só me apaixono se confio. entregar-se assim a um sentimento tão grande, que nem cabe, demanda muito. é como ter suas terras apropriadas por um grileiro: a partir desse momento, este meu corpo será seu, assim como sempre foi. e não só o corpo, r., quem dera fosse. mas é o corpo (mãos, dedos, coxas, seios, ventre), a mente (lobo frontal, ínsula, núcleo acumbente), o coração (ventrículo esquerdo, aorta), o tempo (em salas de espera e filas). apaixonar-se é como se destituir de tudo, involuntariamente, mas de forma voluntária. e para isso é necessária muita coragem.

estou aqui falando de paixão, não de amor. o amor, claro, é quando restitui-se tudo o que foi perdido naquele primeiro momento de paixão. quando o documento do grileiro é descoberto como uma cópia forjada e é feita uma espécie de reforma agrária: cada um ganha seu pedaço do terreno, a parte que cabe do latifúndio. o outro não domina nada, apenas conquista seu espaço, que é só dele, e ali se estabelece.

por isso não julgo seu amigo: não dá para confiar em um grileiro. eu mesma, quando sinto a ameaça da grilagem, faço questão de abandonar minhas terras e ir embora. fugir. picar a mular. nem a pau, juvenal, que ficarei para ver tudo o que construí ser dominado assim, gratuitamente e sem explicação nenhuma.

dizem por aí que isso se deve ao meu signo. à quadratura que minha vênus faz com a lua. à cúspide e ao meio do céu. eu gostaria de mais explicações, por isso estou em busca de uma astróloga. você tem ideia de como funciona a consulta com uma astróloga? é muito simples (para o consulente, óbvio): são discutidos dois mapas astrais, o natal e o do ano. o astrólogo, em teoria, analisa toda sua vida a partir de um mapa do momento do seu nascimento, e depois esmiúça o ano astral que se passa no momento da consulta. quero me consultar com uma astróloga pois acredito que ela, a partir do céu, vai me explicar tudo o que eu preciso saber antes de tentar me fixar nas minhas próprias terras e permitir que outros entrem. sabe?

também gosto da ideia de ser uma pessoa que vá a uma astróloga em busca de explicações. não é qualquer um que faz isso. as pessoas são céticas em geral. quem recorre à astrologia, não. há um desprendimento em acreditar que as estrelas do céu influenciam nossa vida de alguma forma. em confiar em tradições milenares. em crer que, de fato, tudo tem um porquê (ou um como). cristais, incenso, cartas de tarô, velas vermelhas, altares, banhos de sal grosso, carvão atrás da porta, ave-marias e pai-nossos. eu penso em fernanda young quando te escrevo isso. queria ser mais como fernanda young. ligada aos astros, às palavras, destemida, poeta, intensa, espiritualizada, politizada, filosófica. ela é meio como minha tia a., mas com as tatuagens. eu queria ser mais assim, aí eu poderia confiar em me apaixonar por alguém. por ora, pareço mais um receptáculo cheio de pensamentos e sentimentos que está prestes a transbordar mas é retido por um insulfilm na borda.

me passe a hora de seu nascimento, r.? vou fazer seu mapa em um site e pesquisar a explicação. talvez assim a resposta sobre quem é você fique mais clara — nada contra as suas respostas no formulário, mas por ora pareceram subjetivas demais.

abraços cósmicos,
s.

obs.: estou pensando sobre o aniversário de m., que é hoje. será que se fizéssemos uma petição, conseguiríamos transformar este dia em feriado nacional, para que todos de todos os cantos possam celebrar a vida dela? perguntarei a opinião da astróloga.

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