#43: é a última vez que falo de amor, prometo

stéphanie
carteiro
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4 min readJul 4, 2021

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r.,

irei tatuar uma das frases de sua última carta, estou decidida. ainda não decidi em que parte do meu corpo. se no braço, na coxa, na costela ou nas costas. nas costas e na costela, na verdade, não será. em primeiro lugar porque seriam lugares impossíveis de eu ler com frequência. em segundo lugar porque eu mesma irei me tatuar. a frase será: “o risco do amor nunca vale a pena para quem já aprendeu a perder”.

sabe, r., esta resposta era para ser, na verdade, um monte de perguntas. passei dias rascunhando nas folhas a carta que te mandaria, com coisas como “ele também mordiscava sua orelha toda vez que se levantava da cama?”, “ele também preferia dormir do seu lado esquerdo?”, “os dedos dele também envolviam seu cabelo enquanto se beijavam?”, mas vi que não valia. não posso me colocar em uma competição com você também. chega de competições. até porque, lendo sua carta, sinto que você viveu o amor dele muito mais do que eu. eu apenas sofri. foi o que ele me fez: acordar com mordiscadas na orelha, ter minhas costas aquecidas na cama enquanto me abraçava, seus dedos no meu cabelo enquanto nos beijávamos, acostumar-me a ser amada até de repente não ser. mas tudo bem.

é por isso também que vou me fazer essa tatuagem. para que ela seja como um recado. para que toda vez que eu olhar para o meu braço ou coxa eu me lembre de que o risco do amor nunca vale a pena para quem já aprendeu a perder. e isso será muito fácil, r. a tatuagem, claro. segundo um amigo meu, é possível fazer uma maquininha com um motor simples e uma corda de guitarra. confesso que achei essa técnica um pouco complicada, então se não der certo tentarei com agulha e tinta apenas, perfurando minha pele pontinho por pontinho, como ele fez, até a frase estar completa. certamente isso não é recomendado por ninguém, muito menos por profissionais de saúde e tatuadores profissionais, mas sinto que preciso mesmo gravar isso em mim o quanto antes, e não basta um bilhete no meu quadro de cortiça, que fica ao meu lado doze horas por dia enquanto trabalho.

tem essas coisas que eu preciso deixar escritas em mim para não esquecer, porque elas são simples demais, às vezes óbvias demais, e meu cérebro pode substituí-las com outras informações. essa é a razão de eu decidir anotar no meu corpo tudo o que é importante: não confio na minha cabeça. ela pode me pegar de surpresa com pensamentos obscuros, que contrariam minhas convicções sobre o amor. “tudo bem dessa vez, não vou me apaixonar” é o maior exemplo de malandragem que eu mesma posso aprontar.

enquanto escrevo isso, eu também penso: mas como me julgar? como manter a cabeça vazia para conseguir lembrar desses recados importantes se na maior parte do tempo ela está ocupada pensando em como vamos conseguir derrubar o presidente e seus seguidores? ou pensando em palavras como “genocida”, “vacina”, “cloroquina”, “propina”? (é até mais fácil por causa da rima, então grudam na cabeça.) isso sem contar, claro, que diante de tantas notícias ruins, minha válvula de escape é o amor. falar de amor aqui, procurar amor no tinder, lembrar de amores do passado. a questão é que isso não pode se voltar contra mim. posso brincar de amor sem me envolver em grandes riscos. por isso vou tatuar sua frase. o risco do amor nunca vale a pena para quem já aprendeu a perder.

meu violão está empenado, as cordas estão velhas e certamente elas não são de guitarra. você me daria uma das cordas da sua? sei que você tem gravado algumas músicas com t., mas imagino que uma corda não irá fazer falta. quantas te sobrarão? cinco? posso devolvê-la para você depois de usá-la, claro. se puder, me mande na próxima carta. saiba que, repito, pretendo fazer essa tatuagem o quanto antes, mas me permitirei esperar por sua resposta.

a questão é que preciso fazer isso por mim mesma. assim como precisei hoje fazer um bolo de fubá às 5h da manhã, porque sonhei que comia um bolo de fubá com café quentinho. eu separaria um pedaço para você, mas ouvi dizer que tem acordado cedo para ir caminhar. está certo, precisa se cuidar e cuidar do coração. e existem poucos jeitos para fazer isso. esse que você escolheu é o mais fácil.

depois da tatuagem, irei também parar de falar de amor nestas cartas, estou decidida. ainda não me decidi sobre o que vou falar. se sobre cachorros, livros, cuscuz ou anarquia. sobre amor, certamente, não será.

abraços quentinhos porque está muito frio,
s.

bagunça.

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