#45: cobra mordendo o próprio rabo

stéphanie
carteiro
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3 min readJul 19, 2021

r.,

agradeço pela corda. ela foi perfeita, fiz a tatuagem. na verdade, fizeram. toda aquela ladainha que te contei na última carta se desenrolou de uma forma totalmente diferente da que eu planejava. não me autotatuei, muito menos me autotatuei uma frase sua. levei sua corda a um profissional (que coincidentemente estava sem a sol na guitarra dele) e ele desenhou em meu braço uma coisa que decidi na hora: um envelope fechado. se você estivesse lá, teria visto o quanto me doeu. se estivesse aqui, saberia o quanto coça. segundo o tatuador, no próximo dia vinte e quatro tudo estará bem. específico, não? queria que sempre tivesse alguém assim na minha vida, que agendasse a realização das minhas necessidades.

por que tatuei um envelope fechado? não sei. apenas senti que deveria ser assim. acho que o envelope fechado talvez tenha muito mais a dizer do que qualquer frase. lá dentro pode ter umas cinco folhas cheias de memórias, um bilhetinho com um número de telefone, uma foto da adolescência ou um poema. pode ter um boleto de cartão de crédito ou uma propaganda de cemitério. pode não ter nada também, mas a dúvida já faz valer a pena. corrigindo, r., tatuei um envelope de schrödinger, ou envelope de s., se preferir.

cartas não enviadas também são uma espécie de carta de schrödinger, mas também podem ser uma espécie de diário. uma vez li na internet uma carta sobre piglia e cartas e diários, um tal de rodrigo escreveu. se eu achar, te mando. talvez esse livro do piglia ou esse texto do tal rodrigo possam responder à sua pergunta. eu não tenho resposta. queria poder dizer “r., no dia dezessete terei uma resposta”, mas não posso. você pode tentar com meu tatuador. o número dele envio num bilhetinho dentro do envelope.

não estou acompanhando à cpi. durante as sessões, pinto as unhas, planejo tatuagens e pulo corda. apenas verbos com pê, pê de “porra, não posso mais com esse país”, porque a cada dia que passa posso menos com esse país. não que eu poder ou não com ele mude alguma coisa, continuarei aqui. apesar de saber que as cartas me aproximariam dos meus amigos se eu estivesse longe, ainda assim não teria a chance de entregá-las nas mãos deles. você pode ver, então, que compartilho de suas angústias. aliás, você citou sua preocupação com o carteiro. também estou preocupada. outro dia estava passeando pelo bairro e encontrei ele no bar, sem máscara, acompanhado de uma cerveja barata e um vira-lata. ele estava bêbado, e babava no balcão do boteco. tudo errado: um carteiro sem entregar cartas e amigo de um cachorro.

esta semana participei de um curso que me fez pensar. era sobre literatura e introspecção. não bem isso, mas não vem ao caso desenvolver. a questão é que a professora pediu aos alunos que refletissem a respeito de suas obsessões. quais são suas obsessões, r.? e por que elas são suas obsessões? será que somos obcecados pelo que amamos, pelo que somos ou pelo que queremos? só vale uma opção. sou obcecada por respostas únicas. e por escrever cartas com elementos que se repetem, me apaixonar sozinha e beber suco de maçã. essas obsessões são herança de anos sem terapia e um porão cheio de traumas. menos o suco de maçã, claro. suco de maçã só é gostoso.

que carta sem pé nem cabeça. peço desculpas por não ter dito nada e por ter tomado seu tempo de leitura. você poderia estar vendo a cpi, pintando as unhas ou caminhando em vez de fazer isso. a questão é que desacostumei a falar de outra coisa que não seja amor, e pelo visto há tantas outras coisas no mundo que eu nem sei por onde começar. desculpe novamente. de qualquer modo, te digo que essa informação de que você começou a caminhar me incentivou a caminhar. tenho acordado cedo e andado alguns quilômetros pelo bairro, por isso me atrasei na resposta. andar faz bem, principalmente depois de ter passado um ano sentada na frente do computador. agora passo o dia sentada na frente do computador disposta.

se você não morasse tão longe, poderíamos combinar de caminhar um dia juntos. quem sabe até correr. mas nas áreas planas, claro. subida e descida não.
abraços cheios de endorfina,
s.

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