#46: carta de vinhos

O Carteiro
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4 min readJul 26, 2021

l.,

hoje caminhei até o mercado e lembrei de você. não me lembrei enquanto andava, uma versão sedentária e desromantizada de um momento propício à reflexão, mas sim enquanto bisbilhotava a prateleira de vinhos bem em frente aos abacates. recentemente, você me disse que o comte de neufchatel é um espumante, não um vinho e a verdade é que eu não tenho a ideia da diferença entre um e outro, se é que ela existe. sei que a champagne é aquela produzida na frança, mas e o restante?

não sei se já te contei a respeito em uma de nossas muitas conversas, mas uma vez tomei um gole de um vinho cujas uvas que o produziram cresceram logo ali do ladinho de onde bebia. pense em uma horta, mas com uma centena de vinhas, um mar delas, uma extensão a perder de vista — o orgulho de uma nação se é que eu entendi bem o que o guia dizia, mas poderia ser qualquer outra coisa. depois de uma guerra civil que destruiu a maior parte das vinícolas do país, o lugar acabou se reerguendo e virando uma potência mundial em se tratando da produção da bebida. obviamente eu não lembrava tudo isso de cabeça e por isso tive que procurar no google para escrever esta carta, mas aposto que o carlos, que postou uma resenha sobre o comte de neufchatel (dizendo que ele é excelente para uma noite de verão e que a cor de pêssego reluz na taça elegantemente) deve saber tudo a respeito. talvez ele possa nos ensinar uma coisa ou outra sobre vinhos, imagina só quanto aprendizado.

queria te contar tudo isso ao vivo enquanto atravessamos a rua para almoçar e logo em seguida comprar alguns cookies como costumávamos fazer. na última vez em que nos vimos, comemos pizza e bebemos uma cachaça baiana que deixou os dois tontos antes das 19h. mais de um ano depois daquele dia, nenhum de nós tem a mesma disposição de antes e agora discutimos qual é o melhor suco de uva integral e se vale a pena acrescentar um pouco de água no copo antes de virar o conteúdo em direção à boca.

há alguns dias, depois de olhar a validade de um espumante (será mesmo?) daqui de casa, li uma notícia a respeito da privatização dos correios. se tivesse que ser sincera, diria que com todo esse bambolear não sei o que será do envio desta carta. não sei o quanto você tem acompanhado a respeito dessa história, mas talvez tenha visto o secretário de desestatização do ministério dizer que a medida era um jeito de salvar o serviço (dos correios, não o dele, no caso). não farei nenhum comentário extenso sobre tudo isso porque sei que deve estar pensando o mesmo que eu, mas queria compartilhar a sensação de que nossas cartas acabarão trocadas por aí e só deus sabe quem irá recebê-las.

por outro lado, não sei se a coisa toda seria tão ruim assim no nosso caso — pr’além dos conteúdos perdidos e do trabalho de escrevermos uma nova carta a cada vez, é claro, o que pensando bem já seria um trabalhão. mas faria assim tão mal se nossas conversas vazassem pelas esquinas de onde moramos? não sei, eu mesma já falo tanto de você por aí — minha família, meus amigos, todos sabem a seu respeito. a última vítima foi t. e qual não foi minha surpresa quando ele disse que já havia te conhecido. mais tarde, enquanto refletia a respeito, percebi que a coisa toda não deveria ser novidade alguma uma vez que te conhecer é me conhecer — e o mesmo é válido para o sentido contrário. tudo isso não de uma maneira que nos faça esquecer ou abandonar o caráter subjetivo de cada um, mas que me faz ter vontade de propor um brinde às amizades como a nossa e todas aquelas que não têm nada a ver, mas que foram constituídas à sua própria maneira.

estou quase certa de que se o secretário de desestatização lesse o conteúdo desta carta, ele acabaria fazendo uma má interpretação dela, igual àquela feita sobre os correios. talvez ele pensasse se tratar de uma carta de amor, como se todas as cartas de amor devessem ser românticas, sem a mínima ideia de que elas podem carregar diversos outros teores. queria te enviar uma parte do conteúdo do comte de neufchatel que ganhei para que pudéssemos fazer uma chamada de vídeo e beber juntos como não fazemos há tempos. porém, decidi deixar a garrafa aqui guardada, com um aviso de “não mexa” colocado à ela, para que em breve possamos abri-la e celebrar nosso reencontro assim que for possível.

de quem continua não entendendo sobre bebidas, mas gosta de celebrar amizades
m.

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