#48: um tempo sem ruínas

O Carteiro
carteiro
Published in
4 min readAug 8, 2021

r.

Sei que há muito não nos falamos, mas hoje me deparei com “A Ocupação”, do Julian Fuks, na minha estante e me lembrei de quando você e v. me contaram sobre o autor pela primeira vez enquanto eu observava atento às expressões de vocês, como quem tenta decifrar as entrelinhas de feições já muito conhecidas, como quem sabe que há sempre algo novo para captar. Voltei para aquele momento específico, que na verdade é um retrato de um tempo que está onde está, e assim me lembrei das nossas caminhadas matinais e no sopro de vida que existia nos instantes iniciais daqueles dias.

Aprendi com você a buscar as respostas nos livros, na literatura, por isso hoje corri para a estante na busca de uma resposta, já que as mesas de bar estão inviáveis por ora. Nunca te contei que este livro, que li graças a observação atenta às suas falas, me faz repensar sobre a minha relação com a literatura e com o mundo, sinto que sou o próprio Sebastián subindo as escadas da ocupação do antigo Hotel Cambridge tentando entender como me encaixo nisso tudo. Abri a primeira página, busquei as primeiras palavras, ou respostas, e me deparei com a sentença: “todo homem é a ruína do homem”.

Tenho pensado que o tempo em que vivemos nos exige certa dureza, e dureza significa deixar ruir tudo que não se encaixa nos significados possíveis dessa palavra. Este sábado estive mais uma vez na manifestação, que aos poucos vai se tornando constante e parte necessária deste tempo, as tarefas organizativas já são rotina. Desta vez era o 24j. Sinto que iremos completar todas as combinações possíveis de números e letras a ponto de o 29m ser idêntico ao 14a, sinal de nosso tempo. Tempo este que, ao contrário do tempo em que falávamos sobre Fuks e éramos felizes pelas manhãs, está bem aqui e demora a passar.

Sei que o trabalho tem te demandado nos finais de semana e nos impede de estarmos juntos nestes momentos, por isso te escrevo o que os jornais e até as mídias mais progressistas não são capazes de captar, numa tentativa de te oferecer uma leitura. Tenho visto milhares de pessoas nas ruas, que, no entanto, são milhares de ruínas das pessoas que existiam antes de tudo isso, pessoas que já não têm mais seus empregos, casas e amigos, ruínas de famílias as quais se ausentam seus pilares. Ao mesmo tempo vejo que existe ali um certo tom de esperança e alegria. Neste ponto meu olhar se turva, pois neste último dia estive com m., sua amiga e de s., acredita? Nos conhecemos nesses acasos da vida e sua presença me tem feito acreditar que o caminho inverso, o da reconstrução das ruínas, é possível. Talvez estes sentimentos tenham sido internos a mim e se misturado à multidão. Não te garanto uma análise fria e precisa. No entanto, ainda assim, posso dizer com certa margem, havia um sentimento geral de festa. Me lembro que quando o movimento de moradia ocupa um prédio sem uso, aquele dia é chamado de dia de festa, porque se cumpre um direito. O que estava acontecendo naquele sábado era o dia de festa, a festa possível, a celebração da resistência que estes corpos não abandonarão, mesmo em nossas ruínas.

Apesar das expectativas e esperanças de derrubada das ruínas do presidente do país, tenho que dizer, r., insistimos no desgaste, em transformar o que ainda resta em mais ruínas, porém a conjuntura atual não nos permite dizer que essas ruínas se tornarão apenas matéria sem forma antes do ano que vem. Tenho dito e ouvido dos meus companheiros e companheiras que as eleições do ano que vem serão as eleições de nossas vidas. Nossas vidas. De uma massa ampla, e que, no entanto, são apenas as vidas que sobraram. De sujeitos cujos rostos não conhecemos, e que, no entanto, sabemos definir exatamente quem são. Mas não deixo de pensar nas nossas vidas, na minha, na sua, em como está a sua mãe e como anda a saúde de v. depois desses anos. Não deixo de pensar em nossas próprias ruínas. O que nos sobrará depois disso? Não quero sair deste tempo e andar sobre os escombros do que já fomos. Mas acredito que sabemos resistir, nossa resistência interna, que construímos ao longo desses anos, naquelas manhãs em que falávamos de Fuks, de política ou de qualquer coisa que nos animasse, na resistência que construímos sozinhos ao longo deste tempo que demora a passar. Vejo agora que é preciso romper com esta ausência, por isso te escrevo, amigo. Quando estamos resistindo às pressões de nossa sociedade, estamos em muitos, dividimos a tarefa, mas quando estamos resistindo às pressões internas, somos apenas nós. Por isso te escrevo, para costurarmos essa resistência.

Escrevo essas linhas e penso nos problemas com o desvio das cartas na sua rua, será este outro sinal de nosso tempo? Comunicações interceptadas, tentativas falhas de contato. Ainda assim continuo, na busca por respostas nessa quinta-feira de julho. Talvez essa tenha sido apenas uma tentativa sem sucesso de construção dessa resposta. Apesar disso, lanço esta carta à sorte, na esperança de que possa servir como uma resposta para quem a encontre.

De quem ainda anseia por outro tempo, sem ruínas,

t.

--

--