#49: Baguncinha

O Carteiro
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4 min readAug 25, 2021

H.,

É muito provável que você não se lembre de mim, apesar da minha extraordinária esperança de que sim. Aqui é F., seu melhor amigo do primário. Estudamos juntos naquela escola, perto do centro de SP, e fomos inseparáveis por um ano. Acho que foi um ano, é o que faz sentido na minha cabeça, mas pode ter sido seis meses ou uma semana, já que todas as memórias se embolam agora.

Eu espero que esta carta não te faça mal, caso você a receba. Faça com ela o que quiser. Não encontrei seu nome completo em nenhum dos álbuns de escola: você simplesmente desapareceu, então consegui seu endereço depois de pedir (e muito!) para a coordenadora do colégio em que estudamos, em que eu estudei até o final do ensino médio, no qual eu não pisava os pés há 6 anos.

Tenho ficado muito tempo em casa durante a pandemia, muito tempo sozinho, e refletido sobre uma série de coisas que me levaram a ser quem sou hoje. Um desses momentos é nosso. Como disse, a gente era inseparável: estávamos juntos em todas as aulas, em todas as festas. Nas aulas de Educação Física corríamos pela quadra e sentávamos lado a lado nos círculos de alunos. Você se lembra?

Numa dessas manhãs você disse que tinha aprendido uma coisa vendo novela com seus pais, me perguntou se eu queria saber o que era. Eu queria. Então você me deu um selinho muito rápido e ficou me olhando de forma divertida. Eu pedi para que você fizesse de novo e você fez. Ali, no meio da quadra, como se estivesse me ensinando um novo aperto de mão. Meu primeiro e segundo beijo.

Nossa monitora, uma aluna mais velha, viu e disse que contaria para a professora C. É muito difícil descrever o que senti naquele momento, mas é como se eu tivesse esquecido por anos da minha existência e então me encontrasse novamente comigo mesmo, como se eu finalmente ganhasse consciência do meu corpo e suas limitações, suas esquisitices. Quis rolar para dentro de mim e nunca ter te conhecido, nunca ter falado com você ou sentado do seu lado nas aulas. Quis voltar para casa, voltar pra cama, mas lá estava eu, sem rota de fuga. Nos dispersamos em uma corrida desajeitada e eu sentei num banco de madeira, fingindo que prestava atenção nos outros meninos jogando futebol. Minutos depois, C. veio até mim e perguntou “Que história é essa de ficar de beijo com H.?”, mas eu não soube responder. Que história é essa?

H., essa é minha história: depois que nos beijamos, permanecemos amigos até que, numa virada de semestre, fomos separados de classe. Minha mãe disse que não queria que continuássemos próximos, já que bagunçávamos muito juntos. Não sei se a mudança foi obra do acaso, da escola ou dos meus pais e, sinceramente, nunca tive coragem de perguntar. Já não éramos amigos, já havíamos criados outros laços, já havíamos esquecido das coisas que precisavam ser esquecidas e não fazíamos mais as perguntas que queríamos. Meses depois, soube que você tinha deixado o colégio e nunca mais nos vimos. Eu permaneci, pelo resto da vida, um aluno exemplar, sem recuperações e com pouquíssimas advertências.

Por incrível que pareça, eu me lembro do seu rosto de criança. Será que nos reconheceríamos na rua? Eu me lembro de seu pai (espero que ele esteja bem!) e do modo como ele usava um cachecol grande nos dias de frio, deixando uma ponta para frente e outra para trás. De vez em quando, eu saio na rua com o cachecol desse jeito e penso nele. Eu gostava do seu pai e acho que ele gostava de mim. Quando conversava comigo na escola, ele ajoelhava para que a gente conversasse olho no olho e, se ele estivesse usando um cachecol, a ponta da frente raspava no chão. Não me lembro da sua mãe.

Tenho 24 anos, imagino que você tenha 23 ou 25. Há 8 anos, ainda um garoto, me apaixonei por outro colega de classe e, numa noite, sonhei com você. Lembrei de você. Comecei o que seria um longo questionamento até me entender como um homem gay. Em todos esses anos, senti várias vezes como se aquela monitora do colégio continuasse me olhando. A vergonha fodeu minhas amizades, meus relacionamentos, e grudou na minha roupa que, como se estivessem molhadas, grudaram no meu corpo até que eu não soube mais distinguir o que era corpo, roupa e vergonha. Acho que ainda estou tentando separar um pouco tudo isso.

Eu me pergunto o que seria se ninguém tivesse falado nada. Se tivéssemos continuado naquela quadra, jogando bola, brincando com nossas mãos, imitando de vez em quando o que víamos na TV. O que seria se tivéssemos continuado na mesma sala, se nossos pais se tornassem amigos, se fizéssemos viagens em família. Que história é essa?

Talvez nosso beijo não tenha significado nada pra você, talvez não passe de uma memória vergonhosa que te persegue quando tenta dormir. Talvez você esteja casado, já tenha um filho e pouco tempo para refletir sobre amigos de infância. Mas, sei lá, queria saber que você ainda existe, costurar as pontas soltas, conhecer o seu rosto de agora.

Se você estiver confortável, me escreva de volta. Estou por aqui.
F.

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