#51: nunca mais me assuste assim

stéphanie
carteiro
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2 min readOct 10, 2021

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caro r.,
querido r.,
estimado r.,

se sumi, se não escrevi mais, a culpa foi sua. você me assustou de tal forma que todo o alfabeto saiu de mim. nas últimas semanas, se eu falei alguma coisa, sei que foram apenas balbucios. por isso, nunca mais me assuste assim.

eu sei que a culpa não foi sua, claro. a culpa foi do seu sangue que, por alguma razão, não soube como coagular. será que o sangue desaprende a coagular, assim como eu desaprendi a escrever? o que será que assustou seu sangue para que ele parasse de fazer o que devia e te deixasse tantos dias numa cama de hospital, cheio de cabos e dor nos olhos? hoje pensando, a dor nos olhos deveria ser da vontade de enxergar as coisas que estavam além daquele quarto compartilhado. meus olhos não doeram, mas eles se cansaram de ver outras pessoas que não meu amigo. por isso, nunca mais me assuste assim.

já fez os novos exames? imagino que os trinta e três pontos da sua barriga já estejam quase fechados. cristo morreu aos trinta e três anos, sabia? mas depois de três dias ressuscitou, é o que dizem por aí. ainda bem que você já passou dessa idade e esse número é apenas a métrica de uma cicatriz. eu tenho uma cicatriz de três pontos, você sabe, estava lá comigo. aliás, você não imagina como fiquei ao saber que você estava no centro cirúrgico enquanto eu dirigia para um lugar a muitos quilômetros (bem mais de trinta e três) do hospital. por favor, nunca mais me assuste assim.

estou sendo egoísta, mas sincera. se preserve, assim eu me preservo. é a lei da selva: sozinhos somos nada. lembra quando minha outra melhor amiga foi para um hospital, mas não voltou? uma parte minha ficou com ela. se eu perder outra parte, deixo de existir. então, faça o favor, nunca mais me assuste assim.

perdão pelas duras palavras. estou recuperando cada uma delas pouco a pouco. ver você com sua família, sua mulher, seus filhos, seus gatos, todos aliviados pela sua alta, me deu forças. não muitas, porque forças de verdade nunca tive, mas certamente mais forças do que antes, quando eu balbuciava no telefone com sua mãe “como assim um hematoma pode fazer isso?”. hoje tenho medo de hematomas, eles me assustam. outro dia me peguei com medo de me movimentar muito, me dobrar demais e ficar com um hematoma, ir para o hospital, quase morrer e ter que deixar você, meus amigos, meu marido e minhas plantas. te imploro, nunca mais me assuste assim. tome seus remédios, vá ao médico, beba no mínimo dois litros de água por dia e não pegue pesado nos exercícios.

quando conseguir, me ensine a voltar a escrever. tá?

abraços da sua amiga,
s.

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