#53: a primeira vez

stéphanie
carteiro
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4 min readOct 31, 2021

r.,

ouvi dizer que você está se recuperando, é verdade? a notícia chegou por mim pela dona do mercadinho da rua de cima, que soube pela vizinha, que é prima de uma senhora que frequenta a mesma igreja que uma das enfermeiras do hospital universitário. parece que todos te conhecem. ela se referiu a você como poeta, falou do seu livro e disse que contava que a experiência de quase morte seria frutífera literariamente. foi a dona c., a mulher do mercadinho, quem me disse isso. de fifi a fifi, a mensagem foi: “r. está melhor apesar dos cortes, das hemorragias e dos sustos que o coração levou”. espero que seja verdade. o processo de cicatrização de qualquer coisa leva eras, mas começa em algum momento, sem falta.

não é engraçado que essa notícia tenha chegado a mim pela dona do mercadinho? claro que não me espanta, todos neste bairro se conhecem, mas nunca imaginei que iria na dona c. comprar velas (acabei me esquecendo de pagar a conta de luz) e sairia de lá pensando em como estava em falta com você. eu deveria ter escrito antes, perguntar dos cortes, das hemorragias e do seu coração. por isso faço agora, e espero que não demore para que você leia esta carta e me responda contando da melhora de seus dias e de seu reestabelecimento.

minha filha acaba de dizer que preciso escrever mais coisas nesta carta, que não pode ser só isso. sabe que faz anos que não escrevo uma carta? acho que esqueci como se faz. lembro de quando éramos jovens e trocávamos cartas por e-mail, fingindo que eram entregues pelos correios. fazíamos graça dizendo que um carteiro havia desviado nossas mensagens e que outras pessoas abriam nossas correspondências. foi uma boa época, não? durou o que tinha que durar.

bom, como p. me disse que preciso escrever mais, decidi contar a você o que fiz esta semana. veja: eu, uma mulher de sessenta e sete anos (quantos anos você tem hoje, r.? sessenta e três?), fui à primeira vez na vida a uma sex shop. uma amiga de infância da minha filha vai se casar e p. decidiu dar de presente algemas e uma venda. quando ela me contou que escolheu ser essa amiga, a divertida, a que não dá lençol ou fronha mas brinquedos sexuais, eu pedi que me levasse junto à loja, que eu gostaria de ver como era uma sex shop por dentro. r., acredita que ela teve a pachorra de me questionar o que fiz na cama ao longo de tantos anos e tantos casamentos sem nunca ter entrado em uma sex shop? tenho certeza de que coloquei essa garota cedo demais na análise.

posso te descrever com detalhes os objetos que existem dentro de uma sex shop. pintos de borracha, pintos de silicone, pintos que vibram à pilha ou à bateria recarregável. pintos de diversas cores e cheios de nervuras. aberturas que simulam bocetas, calcinhas comestíveis, calcinhas para colocar um dos pintos que descrevi acima. gel de menta, coca-cola, guaraná para oral. gel para intensificar orgasmo, interno e externo. gel de massagem. camisinha. kits de sadomasoquismo. chicotes, algemas, vendas, coleiras, mordaças, cordas para amarrar o corpo todo. couro sintético, couro verdadeiro, pelúcia, veludo. tudo por um preço bem acima do que imaginei.

foi engraçado passar por essa experiência com a minha filha. p. é desenvolta, desinibida, não teve problemas em pegar um ou outro objeto, me mostrar e dizer “esse é incrível”. eu apontava perguntando o que fazer com uma coisa e ela simplesmente explicava, como se me dissesse o passo a passo de um macarrão com queijo. tenho orgulho dela, que não tem medo ou vergonha de nada. nem de dizer que agora minha carta está longa demais.

pedi a ela um último parágrafo. queria te contar que eu mesma me comprei um gel. segundo a vendedora, v., era o mais vendido da casa. ainda não usei, não sei quando vou usar, mas estou ansiosa. no meu prédio tem um senhor, viúvo também, que vive me dando trela. ele é bonito, grisalho, alto, do tipo que a gente gostava, lembra? se chama h. hoje mais cedo me chamou para jantar, mas ainda não respondi. estou pensando. talvez eu teste o gel com ele. se for bom, amiga, eu te conto.

agora p. vai aos correios. já está impaciente. nem a foto que pedi ela quis tirar.

abraços saudosos desta que sempre que pode pensa em você,
s.

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