#54: talvez não deva nem abrir esta carta

Rodrigo Luis
carteiro
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3 min readNov 5, 2021

S.,

Quase já posso amarrar os sapatos. Voltei a caminhar. Recusei os antidepressivos e tive uma excelente nova primeira vez. Além disso, li dois livros inteiros, acho que um pico de produtividade me atingiu (se tivesse força, teria rearranjando os móveis durante a última madrugada). Estou com vontade de viver.

Por isso, nos últimos dias tenho pensado obsessivamente em algumas palavras, conceitos, ideias. Obsessão que é constantemente desviada por mim, que não cesso de pensar quantas angústias cabem numa simples ideia cancerígena: dentro de mim mora alguém que ninguém poderá amar e jamais amará alguém.

Entre amar e sentir amor revolta-se um abismo de mim. Não é de hoje que o primeiro é ideia velha, construída e reconstruída ao molde de qualquer interesse. Já amei, enfatizando a categoria verbal do termo, quem me oferecesse refúgio, alienação, aceitação e poesia, embora não me lembre de sentir amor por essas mesmas pessoas. Ultimamente, porém, tenho me dedicado a sentir, não somente o amor, mas também o medo de quem pensou que iria morrer, e descobriu que quando a gente chega bem perto da coisa, da palavra, há menos pensamento, há menos da própria palavra do que uma sensação. Sentir amor supera o ato de amar, assim como o desejo supera sempre o ato de foder, e o medo de morrer é imensuravelmente maior do que a própria morte. Eu, cinquenta anos e uma vida de homem no passado, não sabia que podia sentir assim.

Talvez não esteja falando coisa com coisa, recentemente me vi como alguém que tem tentado combater a doença dessa ideia do inamável e ainda não sei bem o que sinto quando escrevo cartas. Às vezes penso que as palavras e a linguagem foram criadas a fim de que pudéssemos expressar a sensação do amor, que em via de mão dupla, também corresponde ao desejo e a importância de se saber amado. Não digo coisa com coisa pois estou lutando contra minha própria razão, contra meu pensar demais que já me salvou e hoje só me afunda. Sinto que estou passando por algo que diz respeito à destruição de um modo lógico de viver. Dizem que penso cada vez menos, não tenho achado efetivo problema nisso.

Quase morrer, S., me jogou em um buraco. Tenho certeza de que passei mais de um mês sendo nada mais do que o coágulo que quase me matou. Agora, sinto que o tempo move-se em alguma outra hora. Sinto que é importante sentir. Me resta olhar para o que ainda tenho: os amigos, os amores, a Amora, a capacidade de ainda sentir amor. Brega?

Passei anos tentando resolver as coisas, e resolver demanda uma cartografia, uma aritmética, uma lógica e uma racionalidade que tenho de sobra, mas mora aí o problema. Quase morrer me tirou do buraco. Parece tão claro hoje que lidar bem com a razão não é sinônimo de saber sentir, seja medo, seja desejo, seja amor. Escolhi um livro na livraria, pela sugestão do livreiro, e não pelo nome do autor, crítica ou algoritmo do site da Amazon. Há algo singelo nisso, algo que se eu fosse um gato espreguiçando no sol talvez melhor soubesse.

Queria que essa carta fosse menos as palavras que te escrevo e mais a confusão de existir e perguntar-se mil vezes: estou existindo certo? Estou existindo? Me falta otimismo para pensar que sairemos deste lugar ilesos, há vias mais racionais que me dizem que talvez nem mesmo consigamos chegar à metade do caminho, ainda assim, eu sorrio estranhamente quando um bebê me encara na rua, sinto a liberdade de um bambolê quando o amor invade, sou as gotinhas geladas do copo de cerveja quando celebro com os amigos ou mesmo as gotas de suor e a endorfina quando corremos ou fazemos uma trilha. Fui educado a encontrar soluções, não a sentir.

Tudo começou a ruir.

Espero que no alto do morro onde está hospedada, em meio à neblina e a vegetação, possa estar vendo muito melhor do que eu.

R.

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