#55 e meio: sábado passei o dia pensando na morte

stéphanie
carteiro
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3 min readNov 9, 2021

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r.,

nesta carta vou falar de coisas ruins. se temas como suicídio e estupro te fizerem mal especificamente, sugiro que amasse este papel assim que esta linha acabar e o jogue fora, no lixo mais próximo de você.

antes de começar, queria comentar sobre o postal que mandei para você no outro dia, aquele que escrevi quando tinha alcançado o topo da montanha e estava deslumbrada com o que precisei enfrentar para chegar até ali. sabe, r., eu não considerei na ocasião que ainda havia a volta.

descer a montanha foi ainda mais difícil que subir. quem diria que voltar para o início era pior do que seguir em frente? o sol estava a pino, administrei mal os litros de água e suei bem mais do que deveria. minha boca secou. eu sentia os grãos de areia grudarem na minha garganta, que fazia um esforço absurdo para conseguir engolir. não havia saliva que me salvasse. achei que morreria ali, no chão de pedras secas, com as roupas cheias de carrapato e o sol como meu assassino. hoje, sentada no sofá da minha casa, vendo meu seriado favorito, penso em como você se sentiu ao perceber que por pouco não morreu numa mesa de cirurgia, depois do seu coágulo. a perspectiva de que tudo, todas as coisas, todos os amores, sonhos, angústias, alegrias, planos teriam um fim, sem aviso. por um infortúnio.

no dia que m. m. morreu, sexta-feira, também morreu uma conhecida minha, seu nome era t. estudamos juntas no ensino médio e por certo tempo fomos amigas. depois nunca mais nos falamos. dez anos se passaram e nosso contato era nulo, sequer estávamos conectadas nas redes sociais. ela tinha vinte e sete anos. carreira em ascensão, descobri após seu falecimento. havia se mudado para uma cidade praiana, estava construindo a própria marca, a própria vida. até que foi encontrada morta em casa, em condições que não cabem aqui. a primeira coisa que me disseram é que ela havia se matado. primeira tentativa que deu certo depois de uma série malsucedida.

a questão, r., é que depois descobri que não foi nenhuma angústia de t. que a motivou a cometer suicídio, porque ela não cometeu suicídio. quando ela estava começando a ficar bem consigo mesma e deixando suas tentativas de acabar com a própria vida para trás, outra pessoa entrou em sua casa e decidiu fazer isso por ela. uma jovem de vinte e sete anos, morta de forma brutal. filha única, o amor de uma família composta apenas por mãe e avó, como a minha. morta. assim como m. m., que a caminho de outro lugar, morreu. sem aviso.

sábado passei o dia pensando na morte. aos vinte e sete, t., aos vinte e seis, m. m. pessoas da nossa idade cuja vida acabou. lembro de que quando m. v. morreu, depois de ser atropelada por um ônibus em alta velocidade, eu me assustei como jamais havia acontecido. foi a primeira vez que tomei dimensão de que as pessoas poderiam acabar a qualquer momento. que a gente simplesmente acaba. que a angústia que me tira o sono hoje, qualquer que seja o motivo, não importa de fato, porque vou morrer e ela vai se dissolver no ar. da mesma forma, as imensas alegrias que eu sinto ocasionalmente sinto vão se dissolver. tudo que tenho vai se dissolver.

meu problema é que esqueço que tudo tem um fim. sei que casamentos têm fim, empregos têm fim, séries de televisão têm fim. convivo com isso todos os dias e sou, inclusive, entusiasta de que as coisas acabem, porque sei que na sequência vem o recomeço. a vida, porém, não é assim. as pessoas acabam. de repente, é impossível trocar mensagens com o outro porque ele simplesmente não está mais ali. não porque ele não quer responder, mas simplesmente porque não existe mais para responder. porque acabou. e desse fim eu não gosto. é antidemocrático, não se pode recomeçar. a vida de verdade é só essa e, meu deus, como é frágil.

r., tenho medo de acabar do nada. tenho medo que você acabe do nada. que aqueles que amo acabem do nada. porque se isso acontecer, o que vou fazer? o que resta?

com tanto medo do fim que não sei como acabar esta carta,
s.

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