#56: tio toninho

Rodrigo Luis
carteiro
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3 min readNov 22, 2021

S.,

Por aqui, há anos, a morte também é uma constante. Ontem perdi um tio, um tio-avó, se quisermos usar melhor os graus de parentescos. Não me lembro de derramar lágrimas com as perdas da vida, dessa vez não foi diferente. Ainda assim, sei que um luto se instalou em mim. Imagino-o como o inverso de uma coisa, mas que não pode ser o nada e me escapo de chamar de vazio, pesa o peso das últimas despedidas, ocupa o espaço da memória favorita.

Assim, eu quero, ou preciso para poder lidar com ele, pensar o luto como afeto. Estou avesso a certos rituais de despedidas, não gosto de velórios, enterros e cremações, sei que o morto me entenderia. Não deixo de julgar importante quem assim o faça, mas meus gestos de despedidas são outros, únicos, assim como cada um tem seus próprios gestos de amor quando chega na vida de alguém — alguns levam bolo, outros deixam que chorem no seu peito, outros escrevem poemas e mostram os filmes prediletos; há quem diga eu te amo enquanto fode e quem fique em silêncio por alguns minutos. Sobre gestos de amor, meu tio possuía vários.

Esse meu tio, S, não sei se já te contei, foi dono de um bar de forró. A pandemia foi para ele uma grande crise, não que ainda gerenciasse algo, a bem da verdade, aos oitenta e dois anos já não gerenciava mais nada senão o luto pela perda de sua esposa e minha tia (tia-avó), mas todos os dias ele torcia por uma vacina para que pudesse voltar a dançar. Era lúcido, conhecido no bairro por varrer o quarteirão quase todos os dias. Acho graça que esta carta traga um luto dentro do luto.

Minha tia D. faleceu há cerca de dois anos e meio, pouco antes do lançamento do meu livro, quando sonhei com ela me pedindo desculpas e dizendo que não chegaria a tempo. Ela morreu naquela noite. Arrasado, meu tio largou o forró, a vontade de comer e a capacidade de dormir na mesma cama que semanas antes dormia com D. Ele dizia que havia se tornado “saudade e nada mais”. Fomos obrigados a comprar uma nova cama para ele, para que pudesse voltar a dormir, imagino que sonhando com ela.

(foto de uma cama vazia)

Faz uma semana que esse meu tio confessou, estou cansado. Disse que não queria mais viver e que seu nome não importava mais. Por mais clichê que possa parecer, a pergunta foi simples: como viver com tanta saudade? Sei que o forró fechado dificulta, que o cansaço que aqueles mais próximos sentem nos dias de hoje também, mesmo assim, penso nessa saudade alargada por dois anos, nesse luto que nunca foi outra coisa senão amor, afeto. Penso na tia D., que no ano que partiu planejava a festa surpresa de 80 anos do seu amor, que se dizia sortuda e feliz pelos sessenta anos de casada, jamais arrependida de ter largado o noivo para ir atrás do meu tio (não, não penso no noivo pois isso estragaria a história de amor). Penso na cama que ficou vazia antes mesmo que ontem, no que seria o aniversário de casamento deles, meu tio decidisse partir.

Os parentes contam que ele esqueceu, já que não falou nada para ninguém sobre o aniversário. Eu duvido. Quando me via, meu tio transbordava afeto, pedia para que eu lhe desse perfumes de presente pois gostava de estar cheiroso para minha tia (que costumava dormir nos churrascos de família enquanto segurava um prato ou mesmo o copo de cerveja). Eu duvido. Imagino-o, então, em silêncio, acordou decidido, talvez a tenha visto, esperando-o para celebrar, emocionado-se, a ponto de seu coração, já não dos melhores, falhar. Não penso que fez esforço para voltar, afinal, se vamos para algum lugar, e sei que ele acreditava assim, porque ir embora da sua própria festa?

De quem guarda a memória de uma cama vazia, serei também saudade pelos próximos dias.

R.

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