#57: na minha família

stéphanie
carteiro
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2 min readNov 22, 2021

caro r.,

sinto muito pela partida do tio toninho. não o conheci e também não me lembrava de que ele tinha um bar de forró. só por isso eu já imagino que ele tenha tido uma bela vida, porque é impossível ser triste se seus dias são feitos de ouvir uma sanfona tocar e assistir a casais felizes dançando agarradinhos. isso, somado ao fato de que ele encontrou um amor que o acompanhou pela vida toda, é a prova cabal de que seu tio viveu bem — e que sorte.

na minha família não tenho casos de histórias de amor que sejam exemplo. os casamentos que perduraram só o fizeram porque uma das partes não sabia como dar um basta. sabe, eu também tive uma tia d., mas ela foi casada com tio w. tia d. teve uma vida sofrida, cheia de privações e imposições, porque assim o marido (e a tradição) exigia. morreu por diversos problemas de saúde, mas eu sei que a causa verdadeira foi tristeza. e isso não aconteceu só com ela. outras mulheres da minha família passaram por coisas parecidas, mas a maioria dos relacionamentos não durou mais do que poucos anos, por morte do marido ou abandono.

não sei como essas coisas são nas famílias brancas, mas eu sei que na minha família os homens eventualmente vão embora. morrem porque a polícia matou, morrem porque o tráfico matou, morrem porque o marido da amante matou, morrem porque atravessavam a rodovia bêbados e um caminhão matou. na minha família existe também o caso dos homens brancos, que não morrem, mas vão embora porque não querem uma companheira ou filho negros.

é por isso que não conheço histórias de amor que sejam exemplos de verdade e fiquei surpresa com a do tio toninho. até então, minha referência de amor duradouro era da televisão, com o casal de atores g. e t., sabe? fiquei muito impactada quando t. faleceu este ano, e não por sua morte (como tio toninho, ele teve uma longa e bela vida), mas porque, depois de mais de cinquenta anos, sua esposa, g., ficaria sozinha. não consigo imaginar como é viver o tempo todo ao lado de alguém, mais com essa outra pessoa do que com você mesma, e de repente perdê-la. não consigo imaginar como deve ser ficar sem seu companheiro de toda a vida.

mas isso também foi algo construído em mim por causa da tevê, ou por causa do sonho, mesmo que secreto, de todas as mulheres negras da minha família, que no fundo queriam nunca ter sido abandonadas. as gerações que se seguem, então, nascem sabendo que a solidão é natural, mas que o medo do abandono é arrebatador. eu sou assim, e essa é uma das minhas heranças.

sua tia d. gostava de forró? espero que sim.

abraços,
s.

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