#58: meu sobrinho me perguntou o que era uma carta

Rodrigo Luis
carteiro
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5 min readDec 21, 2021

S.,

Ontem seu filho me perguntou o que é uma carta. Eu estava no telefone, dizendo a M. que encontrei nas minhas caixas as cartas que eu e ela trocamos no início dos anos 2000 — quando nas nossas casas não haviam telefone e muito menos internet (discada). S.., comecemos de novo, seu filho nem deveria estar aqui, anunciando a minha velhice com perguntas como essa. Ele não sabe ler, nunca o ensinei e você não o coloca na escola, mas decidi mostrar a ele o que é uma carta. Por isso, saiba, enquanto escrevo, o menino está me ditando uma série de palavras, acreditando na promessa de que eu as escreverei para você. Foi bastante simples, sabe? Venha, J. vamos escrever uma carta para a mamãe. Engraçado como seu filho tem a mesma curiosidade racional que você costumava ter. Antes que eu trouxesse os papéis e as canetas, J. perguntou se escreveríamos com lápis ou giz de cera, e deixou bem claro que não sabia escrever. Não há com o que se preocupar, eu escrevo para você. Você me conta o que quer dizer para mamãe e eu coloco no papel. Depois tira foto? Seu filho é realmente muito engraçado. Você também era, quando íamos ao parque com nossos pais, a adolescência nos jurando os riscos da vida, e você sempre zombava da burrice daqueles meninos que gastavam toda a mesada no tênis. Nós nunca ganhamos uma mesada, e nossos pais nos levavam ao parque raramente, mas sabíamos que jamais gastaríamos nosso dinheiro com tênis assim. Agora, J. está dizendo que sente falta da mãe, e pergunta a que horas você virá buscá-lo. Como ontem, digo que no final do dia estaremos todos juntos, que você virá buscá-lo e comeremos uma pizza. Você sentada na mesa reclamando da dificuldade que é conciliar a limpeza dos banheiros com os estudos. Depois, com gentileza, perguntando quando voltarei a trabalhar. Terei que explicar que desde a cirurgia não sinto mais vontade de trabalhar, queria algo novo, uma floricultura talvez, vender flores, vender adubo, vender vasos estáticos e belos, feitos à mão. Penso que irá embora triste, mas que o sorriso só vai desaparecer na esquina, quando chegam os arrependimentos e o 971R. Logo, logo ela chega, J. Uma carta, depois de escrita, precisa ir ao correio. Não chega direto ao destino, corre o risco de nem chegar, corre o risco de que a leiam. Não é perigoso, tio? Manda uma foto. Meu celular está quebrado, digo sorrindo. Vamos juntos ao correio, na volta, passamos no mercado. Confesso que o menino está começando a me irritar um pouco, você já devia tê-lo ensinado o que é uma carta, não? Como se faz, como se embala, como escolher um selo e como escrever como quem continua a vida no papel. Você recebia tantas vidas de seus admiradores secretos, líamos-as juntos, lembra? Escondidos, mamãe e papai não poderiam suspeitar que os meninos (e algumas meninas) da escola, lhe chamavam daqueles nomes. Você vai dizer que eram bilhetinhos, cantadas baratas de meninos na puberdade, nunca as chamou de cartas — que pra você eram sempre de amor ou despedida — , mas acho que prefiro assim. Enquanto J. pede que eu desenhe também um coração, lembro de quando um dos bilhetes lhe pediu muito mais do que um beijo. Aquelas mensagens eróticas entre adolescentes nos excitou, escondidos no mesmo quarto de uma casa pequena, tentamos disfarçar, com desejo e insucesso. Virou um hábito, lemos aquela mesma carta durante três dias seguidos. Começávamos pelas antigas, depois passávamos às novas, dignas de belos poemas românticos, mas sempre, um ou outro, dizia “quer ler aquela?”. Era assinada por T., se não me engano. No quarto dia, você pediu para ver por debaixo das minhas roupas e eu lhe pedi o mesmo. J. terminou o desenho dele, um coração, no meio dele, alguns palitos que ele diz ser você, carregam uma caixa que ele diz ser um presente. Diz que o pai está atrás do coração, mas que como ele nunca viu não dá pra desenhar, ou seria um desenho mentiroso. É bom que você traga um presente ao menino, talvez sapatos, já que ele não ganha mesada nenhuma também. Ele diz que gosta de desenhar e pergunta se as cartas não podem ser só desenho, já que ele não sabe escrever mesmo. Pede para que não tenha palavras, diz que você vai entender. Eu não entenderia. Depois da primeira vez que nos tocamos não paramos mais. Não é como se eu nunca houvesse me tocado, e como você me disse, também não era a sua primeira vez, mas a descoberta do Outro nos viciou. Acordávamos com a culpa e dormíamos com ela, mas, durante o dia, éramos feitos somente expectativa de um único momento nosso. Logo, precisei sair de casa, a faculdade ofereceu uma moradia. Não entramos um no outro, nossas mãos e bocas nos bastavam. A masturbação mútua já era o sexo para nós (algo que nunca mais se repetiu na minha vida adulta). Nosso delírio adolescente acabou. Vou ao correio em breve, mudar a carta de lugar, entregá-la ao carteiro. Era a profissão de nosso pai. Imagina se ele lesse essa carta? J. irá gostar, penso, mesmo que não goste do correio ou da fila, vai ficar feliz quando chegarmos ao mercado. Ao menos, vai aprender o que é um envelope e, mesmo sem saber, um segredo. Quase não nos vimos mais, não nos falamos mais. Eu tinha vergonha, mas também medo. O medo devia ter nos parado. Nos viamos nos almoços em família, mas eu nunca mais dormi na casa dos nossos pais, na sua casa, no nosso antigo quarto. Em uma dessas ocasiões, porém, nossos pais precisaram sair. Uma tia passara mal e pediram que eu aguardasse, não nos deixaram acompanhá-los. Ficamos em silêncio, juntos, por dois minutos, eu acho, você se lembra? Não falamos muito. Transamos de forma agressiva na sua cama. Naquelas seis horas nossa tia-avó morreu e nós colocamos mais panos e suor no nosso segredo. Culpei-me, bebi, sofri o acidente de trabalho, a moto caiu em cima da minha perna, cirurgia. Não fiz mais entregas e não deixei ninguém cuidar de mim, não deixei você vir aqui. O menino nasceu nove meses depois. Você disse que o pai era I., mas que ele não quis assumir o filho. Mudei de ideia, iremos ao correio antes de ir ao mercado, está bem? Voltamos a nos ver com calma, você precisava de alguém para cuidar de J., nunca mais houve nem sequer um abraço. Fingimos que nada nunca aconteceu. Você saiu de casa. Com três anos, o menino tem um sorriso marcante. O mesmo sorriso que, na caixa das cartas antigas que eu trocava com M., uma foto minha com cinco anos revelou. Junto dessa carta, S., vai um pacote um pouco pesado, perfumado. Escrever essa carta é por nosso segredo para fora, um fim a esse tormento e a essa mentira. Não voltarei ao trabalho e você não vai precisar mais deixar o meu sobrinho por aqui.

Com amor,

R.

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