#59: da lama ao caos

stéphanie
carteiro
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3 min readDec 21, 2021

r.,

ainda não acredito que você foi preso. na verdade, não acredito que você fez o que fez, e ainda me arrastou com você. não consigo imaginar como você teve coragem de me enviar a prova do seu crime, de confessá-lo a mim (e, para piorar, por carta). agora a polícia confiscou todas as nossas correspondências, tirou nosso site do ar e tem um cara querendo me indiciar como cúmplice. é ridículo porque nem posso comentar isso em mais detalhes por aqui. sei que, uma vez que as cartas chegam aí no presídio, os agentes penitenciários abrem e leem tudo. você fez essa burrada e agora perdeu sua liberdade e seu direito à privacidade. e eu também.

até outro dia meu primo estava em detenção aí no cdp de pinheiros e eu sei bem como as coisas funcionam aí dentro. então espero que nessa primeira semana as coisas tenham corrido bem, na medida do possível. junto desta carta, enviei cinco maços de cigarro, três sabonetes e um xampu. se essas coisas não chegarem às suas mãos, já sabe.

soube que a a. já está em contato com uma boa advogada, então talvez você consiga um habeas corpus e saia logo daí. minha avó já acendeu uma vela e está rezando por isso. minha mãe está decepcionada. eu também, claro. que merda foi essa?

eu pensei em escrever esta carta de um jeito suave, afinal, você já está aí, todo fodido. sabe-se lá o que está passando aí dentro. pensei em te contar as novidades sobre o mundo aqui fora, como o palmeiras ter ganhado a libertadores, a. m. ter passado na primeira sabatina para o stf, ou a esquerda da internet ter parado pela possível morte de um fake anônimo. você teria adorado acompanhar isso, parece aqueles bons e velhos debates que temos sobre o limiar entre ficção e realidade. mas foda-se, nada disso importa, porque agora você tá aí de cabeça raspada, prestes a emagrecer dois quilos a cada dia até sumir, porque não vai se alimentar nem dormir direito.

sua família aqui fora está bem, apesar dos pesares. estão tentando encontrar um meio de provar sua inocência. queria eu estar nesse meio, mas foi a mim que você confessou o que fez. foi ao meu endereço que a caixa chegou. nossa amizade me colocou nessa junto com você, mesmo eu não querendo isso. ainda assim, não vou te abandonar. há um tempo te escrevi uma carta falando sobre amizade, e eu pensava que as maiores provações poderiam ser outras, mas agora eu sei que não há nada pior do que ficar em dúvida se devemos apoiar um amigo que fez algo terrível, sendo que o grosso é a dúvida. não sei se agi certo com você, comigo, com a justiça.

no final das contas, isso também não importa. o que foi feito foi feito, e a cada minuto a gente faz uma escolha. a minha é continuar com as cartas e com nossa amizade. não sei qual o preço disso, mas, afinal, eu nunca soube.

cuide-se por aí. me escreva se der.
abraços,
s.

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