#60: pessoas, pedras e relações

Rodrigo Luis
carteiro
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3 min readDec 21, 2021

S,

Privado da liberdade e do afeto, coloco-me à disposição para pensar o tempo. O que aqui nem sempre é certo, já que não levo relógios ou me indicam o nome dos dias. claro, não que esses marcos fossem a certeza do tempo. Há aqui o momento presente, o passado e o futuro. Estar preso nunca é o futuro, assim como penso que estar sozinho também não o seja.
Já faz alguns dias que estou preso, mas não vejo esses poucos dias atrás como se fossem meu passado. Vejo o presente se diluir por alguns espaços a mais na linearidade do tempo. Meu passado começa, talvez, há dois anos atrás, quando sorria no ônibus, na época em que pegávamos ônibus — que época era aquela mesmo? quanto dura uma época na memória? –, e você zombava de mim perguntando “como pode estar assim tão apaixonado?”, e eu lhe dizia “só se apaixona assim quando se corre o risco, mas talvez sem saber estar correndo”. Nessa memória, parece começar o passado da prisão em que vivo hoje.
Não tenha a errada impressão, S. o risco sempre vale à pena. Desde que aprendi a colocar meus afetos nas pessoas e não nas relações, não vi problema em temer sentimento qualquer que venha.
Veja, para ficar mais claro, gosto muito e admiro muito mais a pessoa que é, velha com seus sessenta e sete anos, rabugenta, só come alguns poucos alimentos e reclama do resto, com a casa cheia de cachorros, cada um simbolizando uma tristeza, e suplemento alimentar, acho que enlouqueceu, do que, essencialmente, o culto à performance de uma amizade. Em outras palavras, se me pedisse, lhe entregaria outro cachorro, faria a marmita que sempre me pede, ainda que fosse saudável você comer outra coisa, entre tantos outros gestos de cuidado. Há uma linha tênue, pois tudo isso são as pedras que colocamos juntos para formar o que chamamos de amizade, como todas às vezes em que me socorreu no meio da noite, mas nenhum de nós dois, somos, efetivamente, tais gestos. Assim como não somos o vento, a chuva, o fogo, o frio ou os problemas, que batem nas pedras. E nos prostramos, por vezes, a construir uma cabana, conjuntamente, medindo a altura de cada um, na defesa dessa fortaleza.
Talvez tenha ficado mais confuso, peço perdão. Afinal, o passado, o risco, o desejo de proteger as pedras para um futuro, nada disso escapa ao presente que torteia minhas linhas, destrói minhas ideias, uma flor que cresce próxima demais ao castelo de pedras e o desestabiliza. Nada disso faz com que o abandono, o choro, a memória, as palavras essenciais que trocávamos diante da construção silenciosa desse espaço nosso, doa menos do que deve doer. Atingido por algumas pedras, chorando sobre elas com os joelhos rasgados, esqueço que ela já não está mais ali, como aquela fase do pós-morte, do luto, em que preferimos a pessoa quase morta do que definitivamente sem vida. S, ainda vou chorar por mais alguns poucos dias. Como sempre, choro muito, mas choro por pouco tempo.
Depois as pedras desaparecem, depois a memória faz com que sua imagem apareça outra vez, nítida, depois a prisão vira também passado, e as pedras ficam dispostas ao chão de uma maneira que só poderia ficar porque fomos nós que colocamos aquele pequeno castelo ali. Há algo de belo, também, nisso tudo. Porque éramos nós, talvez.
S, que bom que posso te escrever, não me sinto tão sozinho. Penso “onde vou colocar esse amor, agora?”. E acho que eis a pior parte do abandono, fazer-nos achar que é possível controlar o risco, a vida, os seres. Prepare uma festa para mim, semana que vem, fujo dessa prisão.

Se tiver que ser na bala vai.

R.

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