#8, finais

stéphanie
carteiro
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3 min readNov 4, 2020

r.,

neste texto eu gostaria de tratar de finais. nos últimos dias, concluí dois livros que tinham bons finais: segredos, do starnone, e @mor, de um alemão chamado daniel glattauer. ambos, claro, são diferentíssimos. o primeiro conta, a partir da história de um professor e escritor italiano, como nossos segredos podem nos assombrar por toda a vida. o segundo, é um romance que se dá através de troca de e-mails entre dois desconhecidos que acabam se apaixonando pelas palavras um do outro. a grande questão é: nenhum dos dois finais é feliz, nem necessariamente triste — são apenas impactantes.

o primeiro livro de final impactante que li foi o meu favorito, 1984, quando eu tinha uns catorze anos. lembro que senti como se um buraco tivesse sido aberto no chão e absolutamente todas as coisas, menos eu, tivessem escorregado para dentro dele. me senti suspensa, vendo um grande vazio embaixo de mim e pensando que não havia escapatória para nada na vida (e isso apenas com uma frase do livro, a última).

pouco a pouco fui descobrindo, porém, por outros amigos que também leram 1984, que o final que tanto tinha me impressionado não era um consenso. havia outras interpretações para o mesmo acontecimento descrito por orwell naquele desfecho. a das outras pessoas, claro, não me era nem um pouco impactante, e se eu tivesse feito a mesma análise que eles, provavelmente esse não seria meu livro favorito. nenhuma das duas leituras está certa ou errada, claro, não existe isso, mas é certo que existe a certa para mim e a certa para o outro. a subjetividade do indivíduo é que imprime o significado da leitura, seja de livros ou da própria vida.

sem querer ser a pessoa que mete uma citação acadêmica em uma correspondência on-line, mas ontem eu lia sociologia da leitura (chantal horellou-lafarge e monique segré) e, dentre muitas coisas que elas disseram, uma (que é tema já recorrente em teorias e práticas da leitura, mas está bem resumidinho) se encaixa perfeitamente nisso que falo aqui. veja:

A leitura é o encontro do texto com seu leitor. Wolfgang Iser insistiu também fortemente no fato de que um mesmo texto pode ser objeto de leituras diversas, contrastantes, que não há interpretação “correta” de uma obra que tenha de se impor, que todo texto é por definição polissêmico e ambíguo, rico de numerosos “potenciais de significação”, não esgotados pelo leitor que se nutre de interpretações múltiplas e variadas. No entanto, as interpretações não são infinitas. O texto, por sua estrutura e seu conteúdo a um só tempo explícito e implícito, guia a imaginação do leitor, controla-a. A leitura é um processo que alterna liberdade, criação e coerção. (p. 139)

quando terminei de ler segredos, do starnone, e sobretudo o livro do glattauer, eu fiquei desconsertada. o primeiro faz uma pequena (para mim grandiosa) revelação sobre como a passagem do tempo é um fator curioso quando confrontamos a nossa percepção das coisas com a do outro (poderia dizer “quando confrontamos a nossa leitura das coisas com a do outro”). eu, como você bem sabe, adoro a noção de passagem do tempo, superar obstáculos, olhar para trás quando se está numa montanha e ver o quanto se caminhou, blá, blá, blá. segredos, então, deu as mãozinhas para isso que eu tanto gosto e me desconsertou. o @mor me deixou puta, de mãos atadas, frustrada, birrenta, porque envolvia uma história de amor que se criou apenas com base nas palavras. my jam.

os espaços em branco dessas histórias (alô, umberto eco) foram preenchidos pela minha vivência, minha história, minhas expectativas. e esses mesmos espaços em branco provavelmente se encaixavam justamente às minhas perspectivas. certamente, essas lacunas não são boas lacunas para outras pessoas.

é impossível eu não citar, pela quinquagésima nona vez, montaigne. apesar de o contexto ser outro, a minha leitura sempre volta para a ideia de “porque era ele, porque era eu” (parce que c’était lui, parce que c’était moi). porque sou eu e porque são essas histórias, essencialmente, elas me impactam.

beijos desta que ama o subjetivo e o individual,

s.

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