Carta de um leitor

Renato
carteiro
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4 min readApr 22, 2021

Caro sr. Carteiro,

Aqui quem fala é um dos que recebeu uma dessas correspondências desviadas que o senhor tanto se vangloriou de ter editado em seu último e-mail.

Devo confessar que estava muito, muito, entretido com a troca de correspondências entre S. e R., mas a partir de hoje coloco dúvidas morais ao meu entretenimento. O que é que está acontecendo aqui? Como quem confessa um crime, mas alegando não o ter cometido, o senhor explicitou que está expondo, de forma proposital, a correspondência trivial de duas pessoas que, até agora, nem sabiam estar sendo expostas. Correspondências íntimas que talvez entretenham tanto justamente por serem íntimas e pessoais, e todo mundo sabe que, consequentemente, tudo o que é íntimo e pessoal acaba sendo do interesse público (vide a quantidade de pessoas que se dedicam apenas a trazer fofocas de artistas para a população interessada nas próprias redes sociais que eu tenho certeza que o senhor e boa parte de todas as pessoas que recebem essas correspondências seguem).

Mas em se tratando de pessoas que não tem uma vida pública, é assombroso que o senhor, logo o senhor, Carteiro, um homem tão nobre, que dedica a vida a espalhar por aí confissões românticas, cartas de amantes distantes, correspondências de amigos de longa data, cartões-postais repletos de saudades, tendo uma atitude tão condenável quanto o vazamento de informações pessoais. E não só isso, certo, sr. Carteiro? Um crime ainda pior foi confessado por você nesta última correspondência. (Mas agora, pensando bem, ignorei sumariamente aqui que o senhor também leva desgraça ao enviar notificações de multas de trânsito, contas a pagar, notificações de desligamento de energia, folhetos de propagandas que enchem e emporcalham nossas pequenas caixinhas de correio… mas vamos ignorar tudo isso.)

O senhor, logo o senhor (e pensando em todas as desgraças que o senhor também leva, justamente o senhor) expondo pessoas de maneira tão desavergonhada. E cometendo um crime ainda maior logo depois. Não sei, sr. Carteiro. Estou muito envergonhado comigo mesmo agora, pensando em retrospecto, no que o senhor fez e no que fui cúmplice. Não queria expor ninguém, não queria ter pessoas expostas a mim, não queria ter sido enredado numa trama a qual talvez nem seja bem-vindo. Mas me senti tão mal que senti uma urgência de respondê-lo: seus atos são condenáveis. Não apenas o crime de ter exposto a vida pessoal de duas pessoas, mas o crime maior, o crime mais problemático disso tudo.

Será que pensou nas consequências do que fez até agora? Pensou que talvez S. e R. tivessem propósitos muito específicos ao trocar correspondências (informar ao outro, e apenas ao outro, sobre a própria vida)? Que talvez informar o olhar público sobre a própria vida seja o último desejo de S. e R.? Não conheço tão profundamente R., mas posso dizer ao senhor que S. tenta desabaladamente evitar o olhar público sobre a própria vida. Aliás, ainda essa: um olhar público de pessoas que podem conhecer S. e R. Será que S. e R. queriam ter narrado tudo o que narraram aos amigos? Será que S. e R. tinham interesse em informar às pessoas sobre as próprias vidas e, com isso, acabar gerando olhar público sobre a própria vida e fazendo com que outros vejam e tenham uma vontade de ser amigos dos dois? Será que estavam preparados para lidar com o assédio de pessoas querendo amizade? Isso sem falar em seu pior crime, sr. Carteiro, no crime mais grave.

O crime que me chocou mais do que qualquer outro crime e que motivou este e-mail: como o senhor, sr. Carteiro, logo o senhor, inseriu referências a livros e a filmes? Isso é absolutamente condenável, talvez o pior crime cometido por você até agora. No que estava pensando? Estava tentando produzir conteúdo para uma página do Instagram, conteúdo genérico, conteúdo pasteurizado que lemos todos os dias nas diversas páginas de resenhas que seguimos sem bem saber por que e que continuamos seguindo porque um dia, quem sabe? Francamente, sr. Carteiro. Transformar as correspondências entre S. e R. em conteúdo consumível por terceiros? Lamentável.

Fico triste por estar recebendo esse tipo de correspondência e também por estar presenciando tal ato desesperado por atenção. Sr. Carteiro: produza o seu próprio conteúdo! Escorando-se em palavras escritas por outros para inserir as próprias percepções sobre obras? Agora me pego pensando: será que S. realmente pensou tudo aquilo que falou sobre leitura? Ou será que aquilo tudo eram percepções suas sobre as percepções de S. sobre leitura? E R., tão poético, tão sensível, será que gostaria mesmo de ter cortes abruptos em suas correspondências para o encaixe de qualquer pedaço de mídia consumível que talvez nem seja de seu agrado? Você os consultou previamente antes de cometer a ATROCIDADE de colocar VISÕES DE MUNDO PRÓPRIAS nas correspondências deles?

No fim das contas, sr. Carteiro, o senhor não nomeou, mas eu vou nomear. O senhor está deliberadamente tesourando o texto de duas pessoas sem a prévia permissão. Inserindo coisas, cortando coisas: nunca saberemos quais são as cartas originais, se leremos as originais. O senhor está tendo o papel mais vil, a profissão mais errada, a mais condenável, a mais atroz: O SENHOR ESTÁ SENDO UM EDITOR. Este é o seu maior crime.

Sr. Carteiro, termino este desabafo dizendo que pensei muito se gostaria de continuar recebendo tais correspondências, porque agora me sinto sujo ao ver que acompanhei a troca de cartas de duas pessoas que não deveria ter acompanhado. Mas mais sujo ainda me sinto sem saber se o senhor continuará cometendo tais crimes, então por isso, e SÓ POR ISSO, continuo aqui para averiguar se isso continuará. Não que eu queira continuar recebendo a correspondência pessoal de duas pessoas, longe disso: é porque quero fiscalizar a sua conduta, sr. Carteiro.

Com profunda indignação,
RA.

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Renato
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Faz livros e os lê para entender quem é.