Resposta para a carta #18

Muriel Cristina Vieira
carteiro
Published in
2 min readJan 17, 2021

O Amor me trouxe até aqui.

Querida S.

Você não me conhece ainda. Sou velha conhecida de R. e, por intermédio dele, pude ler suas cartas e criar, enfim, coragem para lhe escrever.

Você não me conhece mas, pensando bem, de alguma forma nos conhecemos sim, posto que vários dos seus sentimentos, entregues de maneira tão gentil e desarmada nas linhas escritas, são também meus, conversam comigo, tocam o meu coração. De todos, a sua ultima carta, aquela sobre amor, foi a que mais me afetou.

Por sinal, afeto é aquilo que nos afeta, nos move, não é mesmo? E o amor me afetou tanto, durante tanto tempo, que pensei sobre ele anos a fio e hoje, lhe escrevendo, já nem sei mais o que dizer a respeito. Eu me lembro claramente de passar noites em claro criando diálogos intermináveis com aquele que me afetava…ler sua carta hoje fez com que eu pensasse sobre isso novamente e tentasse reimaginar as palavras que nunca disse, mas percebi que elas se perderam no tempo.

As vezes eu tento encontrar o amor nos casais na rua, nos 50 anos de casamento dos meus avós e, principalmente, nos livros que leio, como se os olhos dos outros me servissem de observatório. Susanna Tamaro foi quem mais me ensinou sobre o amor. Em Vá aonde seu coração mandar ela me disse que era preciso ser forte para amar, ter coragem e doação, mas em Ouça a minha voz, por outro lado, ela me lembrou da outra face do amor, aquelas fuligens cinzentas e perturbadoramente silenciosas que restam quando o fogo se apaga. A personagem principal desse livro — que não possui um nome, a conhecemos apenas como a neta de Olga — é o fruto desse fogo extinto, a prova de que o amor (e a sua ausência) não afetam apenas os amantes.

Ela é o fruto de um abandono, o que, por sinal, me lembra de comentar que concordo plenamente contigo e também adoro, até mesmo necessito de, livros que falem sobre o abandono. Não consigo entender o amor e por isso nunca formularei uma ideia sobre ele minimamente salva de contradições, mas sempre desconfiei que ele tem muitas facetas e o abandono, certamente, é uma delas. Talvez não seja possível falar de amor sem falar de abandono…ou talvez eu só tenha tido azar na minha vida.

Sabe S., tudo aqui, curiosamente, parece convergir. Eu li Cem anos de Solidão a alguns anos. Foi um livro que me maltratou, por motivos que lhe contarei em outro momento, e me lembrou de alguns abandonos que sofri. Por sinal, falando de amor, acho que me tornei uma espécie de Amaranta, um coração que luta para se abrir novamente.

Acabei por me alongar demais, desculpe. Meu peito deseja te contar muitas coisas, para R. também. Um dia, quando o mundo abrir as portas novamente e nós pudermos caminhar nas ruas, vamos todos tomar um café, o que acha? Como eu disse para R., doces pensamentos, quando compartilhados, adoçam cafés amargos.

Um grande abraço, cheio de admiração e, até mesmo, amor!

M.

--

--

Muriel Cristina Vieira
carteiro

“quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és” — José Saramago