Pesquisas & Políticas Públicas: Discutindo Gênero e Raça no Audiovisual Potiguar

Diana Coelho
cartografiadoaudiovisualrn
7 min readApr 13, 2020

No contexto da produção audiovisual do Rio Grande do Norte, é notável o quanto discussões sobre gênero e raça encontram-se ausentes ou são abordadas de forma residual em espaços de visibilidade que acontecem no Estado, tais como festivais de cinema, fóruns, etc.

Ainda que grupos organizados como Mulungu Audiovisual (coletivo de cinema negro atuante em Natal desde 2018), ou realizadores como Herison Pedro (diretor de “Ubuntu”, obra viabilizada pelo edital Curta Afirmativo 2013) venham pautando publicamente questões raciais e/ou de gênero, a maioria dos editais locais ainda não adotam ações afirmativas em seus processos seletivos.

No campo da pesquisa, há esforços que tem fornecido dados que podem contribuir para ampliar o debate. Aqui, pretendo trazer algumas reflexões e compartilhar algumas pesquisas que tem trabalhado nesse sentido.

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Recentemente foi lançado o e-book “Claquete Potiguar 2 — Histórias e processos do audiovisual no Rio Grande do Norte”, com uma coletânea de artigos sobre a produção audiovisual no Estado (disponível aqui).

O e-book reuniu trabalhos apresentados no “Seminário Panorama do Audiovisual Potiguar”, realizado pela Especialização em Produção de Documentário e o Grupo de Pesquisa CiCult/UFRN

Nele, publiquei um artigo que discute alguns dados sobre a produção de curtas e médias-metragens realizados no Estado entre 2010 e 2018, fruto de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, defendida em 2019.

Aqui, pretendo publicizar e tecer alguns comentários que são aprofundados no artigo, mais especificamente focando no perfil de gênero e raça dos realizadores, articulando ainda com outras pesquisas disponíveis. Em postagens futuras, pretendo me debruçar sobre outros aspectos, como questões territoriais, por exemplo.

Gênero e Raça no Audiovisual Potiguar: Alguns Indicadores

Embora na nossa experiência imediata já sejam muito evidentes as assimetrias — majoritariamente os realizadores que figuram nos circuitos hegemônicos são pessoas brancas, cisgêneras e, em sua maioria, homens -, considero que fazer o uso de dados é estratégico para reivindicarmos ações afirmativas nas políticas públicas a nível local, a fim de transformar esse cenário.

Tendo isso em vista, em certo ponto da pesquisa que desenvolvi no mestrado, apliquei questionários online com filmes potiguares exibidos em sete festivais realizados entre 2010 e 2018, a fim de produzir dados referente a produção e circulação de obras que acessam esses circuitos de visibilidade.

As informações apresentadas a seguir tratam do perfil dos realizadores (no que se refere a identidade de gênero, raça e grau de escolaridade) dos 70 curtas e médias-metragens que responderam aos questionários.

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Considerando a identidade de gênero dos 90 realizadores que identificados pela pesquisa, percebeu-se que há uma prevalência de homens cisgênero (72%), seguida de mulheres cis (26%), sendo identificado um (1%) homem transgênero e uma (1%) pessoa não-binária/outros. Não foram identificadas mulheres transgênero no corpus analisado.

Fonte: Gráfico elaborado pela autora

No que se refere à raça, os realizadores brancos são majoritários (53,3%), seguidos de pardos (30%), pretos (10%), amarelos (2,2%), havendo ainda não declarados (3,3%) e outros (1,1%). Não houve realizadores autodeclarados indígenas na pesquisa.

Fonte: Gráfico elaborado pela autora

Outro aspecto investigado diz respeito ao grau de escolaridade. Nesse sentido, nota-se um alto percentual de realizadores com pós-graduação (43,3%), seguidos de diretores com ensino superior completo (33,3%), ensino superior incompleto (13,3%) e ensino médio (10%).

Entretanto, é importante pontuar que a leitura desses dados deve ser feita considerando algumas problemáticas, principalmente no que se refere à autodeclaração. Em primeiro lugar, 8% dos questionários não foram respondidos pelos realizadores, mas por profissionais que desempenharam outras funções na obra. Há ainda inúmeras codireções (representando 27%), o que dificulta a precisão na autodeclaração. Além disso, consta também realizadores com mais de um filme na lista, sendo assim contabilizados mais de uma vez.

Outros Indicadores

Há ainda outras pesquisas realizadas no Rio Grande do Norte, em sua maioria ligadas às universidades, que nos apresentam dados quanto ao perfil de gênero e raça no audiovisual local.

Partindo de um recorte de 55 filmes potiguares produzidos entre os anos de 2014 e 2016, Geni Laís afirma que as mulheres figuram em apenas 23% das direções e 19% dos roteiros analisados (ARAÚJO, 2016).

A disparidade foi também identificada por Dênia Cruz que, com base no quadro de associados da ABDeC/RN, aponta que cerca de 71% dos realizadores são homens e apenas 29% são mulheres (SCKAFF, 2016).

Recentemente, em artigo publicado no e-book “Claquete Potiguar 2”, Rafaela Bernadazzi e Vanessa Paula Trigueiro traçam um panorama da presença feminina nas equipes técnicas das produções audiovisuais potiguares, estabelecendo um recorte de 57 curtas-metragens exibidos entre os anos de 2017 e 2019 em 5 festivais no RN.

Ao analisar as fichas técnicas desses filmes, as pesquisadoras constataram que 67% das produções foram dirigidas por homens, 28% por mulheres, sendo 5% codireção de homens e mulheres. (BERNADAZZI; TRIGUEIRO, 2020)

Um aspecto interessante que Bernadazzi e Trigueiro trazem é que, quando a obra é assinada por um homem, há um baixo índice de mulheres nas equipes técnicas (77% homens, 23% mulheres), ao passo que, quando se trata de uma mulher na direção, essa disparidade diminui (54% homens, 46% mulheres), sugerindo que, quando mulheres acessam instâncias de decisão, há uma tendência de que essas assimetrias de gênero sejam amenizadas.

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Uma das questões que observo é que a maioria das pesquisas sobre gênero partem de um pressuposto que contempla apenas a cisgeneridade, ancorando-se numa lógica binária homens/mulheres.

Nesse sentido, destaco a contribuição de Luane Costa e Daiany Dantas que, em artigo ainda inédito, aprofundam o perfil das realizadoras potiguares adotando uma perspectiva interseccional, considerando identidade de gênero, raça, sexualidade, território, faixa etária, dentre outros marcadores (COSTA; DANTAS, 2020).

Na pesquisa, as autoras constatam que 100% das realizadoras entrevistadas (18, ao total) eram cisgêneras, e quanto à identidade étnico racial, 44,4% se identifica como branca, 33,3% como parda, uma realizadora (5,6%) se autodeclarou indígena (indiodescendente), e o restante não declarou pertencimento.

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Se pesquisas que atentam a discussões sobre gênero têm conquistado mais espaço nos últimos anos (ainda que reproduzindo uma lógica binária homem/mulher), foram poucas as que se debruçaram a aprofundar análises raciais.

Nesse sentido, Sergio Caetano traz uma grande contribuição para o debate no artigo “O lugar dos realizadores negros no audiovisual da cidade de Natal”, também disponível no e-book “Claquete Potiguar 2”.

Em sua pesquisa, o pesquisador traz reflexões sobre a inserção de profissionais negros no audiovisual em Natal, discutindo o racismo estrutural e institucional que atravessa as instituições culturais e a classe artística, em diálogo com 13 realizadores entrevistados, incluindo homens, mulheres, negros e não-negros.

Um dos aspectos apontados no artigo diz respeito às mecânicas de exclusão dos editais públicos e privados:

“Esse contexto excludente (…) cria uma bolha predominantemente regida por realizadores e realizadoras brancos e brancas, justamente aquelas pessoas que puderam acessar o ensino superior, (…) e as tecnologias necessárias para executar a arte.” (SANTOS, 2020)

Políticas Públicas

Diante dos dados apresentados, é preocupante a pouca inserção de realizadores transgêneros e o baixo índice de mulheres, pessoas negras e indígenas assumindo cargos de direção.

No que se refere a questão racial, o trabalho de Sérgio Caetano, em diálogo com os depoimentos dos entrevistados, deixa uma provocação. Se, em sua maioria, são pessoas brancas que estão presentes nos processos curatoriais, nas comissões de seleção, nas gestões governamentais etc., como esperar que a estrutura não opere a partir de mecanismos de exclusão racial?

“Os aparatos legais que viabilizam as produções audiovisuais, os editais públicos e privados, não dispõem de nenhuma política pública de cotas raciais, nem ações afirmativas que busquem no mínimo diminuir a desigualdade entre realizadores negros e não negros”. (SANTOS, 2020, p. 64)

Diante disso, faz-se necessário pensar uma política pública que considere as desigualdades do nosso próprio campo e esteja empenhada em corrigi-las.

E, se não falamos sobre essas desigualdades, que política pública é essa que buscamos?

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Escrevi este texto no intuito de ampliar o debate acerca das políticas públicas que tem sido pensadas para o fomento ao audiovisual no Rio Grande do Norte, desejando que as questões aqui abordadas possam servir de base para reivindicarmos ações afirmativas, contribuindo também para a emergência de novas pesquisas no campo.

Por fim, cabe pontuar que as reflexões aqui presentes foram escritas por uma mulher cisgênera e branca, residente na capital potiguar.

Caso tenham conhecimento de pesquisas sobre o cenário audiovisual no Rio Grande do Norte que dialoguem com as temáticas abordadas, ou desejem utilizar este espaço para discutir o assunto, podem entrar em contato através do e-mail: cartografiadoaudiovisualrn@gmail.com.

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Geniluce Laís de Paula. A cara do cinema potiguar. Monografia (Graduação em Comunicação Social — Radialismo) — Departamento de Comunicação Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

BERNADAZZI, Rafaela; TRIGUEIRO, Vanessa Paula. Mulheres no Cinema Potiguar: a atuação das profissionais no set de filmagem. In: CRUZ, Adriano, RAMOS, Cida; CRUZ, Dênia (Orgs.). Claquete potiguar 2: histórias e processos do audiovisual no Rio Grande do Norte. Porto Alegre: Casaletras, 2020. (aqui)

COELHO, Diana Xavier. Cartografia do audiovisual no Rio Grande do Norte: experiências emergentes na produção e circulação de obras audiovisuais independentes (2010–2018). Dissertação (Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. (aqui)

COELHO, Diana. Discutindo a Produção e Circulação de curtas e médias-metragens no Rio Grande do Norte (2010–2018). In: CRUZ, Adriano, RAMOS, Cida; CRUZ, Dênia (Orgs.). Claquete potiguar 2: histórias e processos do audiovisual no Rio Grande do Norte. Porto Alegre: Casaletras, 2020. (aqui)

COSTA, Luane Fernandes; DANTAS, Daiany Ferreira. Realizadoras Potiguares: perfil político de gênero e raça do audiovisual do RN. In: XV Salão de Iniciação Científica da VII Semana de Ciência, Tecnologia e Inovação da UERN, 2019. [Artigo Inédito]

SANTOS, Sérgio Caetano dos. O lugar dos realizadores negros na produção audiovisual da cidade de Natal. In: CRUZ, Adriano, RAMOS, Cida; CRUZ, Dênia (Orgs.). Claquete potiguar 2: histórias e processos do audiovisual no Rio Grande do Norte. Porto Alegre: Casaletras, 2020. (aqui)

SCKAFF, Dênia de Fátima Cruz. O Cinema Independente Potiguar de 2010 a 2014. In: CRUZ, Adriano; SCKAFF, Dênia; ROCHA FILHO, Ruy (Orgs.) Claquete Potiguar — Experiências Audiovisuais no Rio Grande do Norte. Natal: Máquina, 2016.

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Esta postagem foi atualizada em 13/04/2020, às 23:13.

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Diana Coelho
cartografiadoaudiovisualrn

Produtora, realizadora, pesquisadora. Até quando, não se sabe.