Assando bolos em Kigali
Ruanda, Tanzânia e muito mais
Oi, cartografistas! Tudo bem?
Angel Tungaraza é profissional. Ela vende bolos decorados sob encomenda para ajudar seu marido, Pius, que está num novo emprego em Ruanda a fim de sustentar os cinco filhos. Entrando na menopausa, Angel não esperava ter de cuidar de duas garotas e três meninos que são de fato seus netos. Seus filhos morreram no mesmo ano e essas perdas ainda precisam ser processadas pela família.
O novo país também atravessa o luto. No ano 2000, Ruanda ainda se recupera do genocídio decorrente de guerra civil de 1994. Colonizadores europeus incentivaram privilégios e opressões com base na aparência física de grupos formadores de Ruanda e, quando a maioria oprimida se rebelou, milhares foram mortos como “baratas” (Scholastique Mukasonga tem um relato autobiográfico com esse título).
Mas os clientes de Angel tem algum motivo para comemorar, por isso vem até ela encomendar bolos. Dessa forma, a autora Gaile Parkin conseguiu construir um livro que aborda genocídio, prostituição, AIDS, suicídio, diferenças religiosas e mutilação feminina com leveza.
A citação é do capítulo três e, se vocês não se importam com um pequeno spoiler, Odile, a personagem que narra esta fala, está bem e termina o livro bem contente (bem fim de novela, entendem?)
A cada capítulo, uma encomenda vai despertar uma nova história, nem sempre ligada a Ruanda, mas com tons de esperança e de sabedoria. O enredo traz muito apoio feminino (sim, sororidade) e ao empreendedorismo local.
No livro, pessoas do mundo inteiro estão ali para ajudar na reconstrução desse pequeno país da África Central. Na vizinhança de Angel há Japão, Índia, Egito, Canadá, Estados Unidos e Inglaterra representados e, claro, Tanzânia — que é o país dos Tungaraza. Gana, África do Sul, Uganda e outros também terão seus protagonistas e a autora busca trazer essa identidade pan-africana e até global para o romance.
Optei por colocar o nome do livro porque não sei bem qual país ele representa mais. Posso dizer que não é a Zâmbia porque só lembro de ouvir sobre o país quando é mencionado onde a autora nasceu, na orelha. Sobre a Tanzânia, país de origem da protagonista, e sobre Ruanda (Kigali é sua capital), aí já tem um bocado.
Aprendemos sobre as diferenças entre eles. Na Tanzânia se fala swahili e inglês. Em Ruanda se fala kinyarwanda e francês (principalmente) e onde também não há um sobrenome da família, mas um segundo nome que costuma ser dito antes do primeiro. Há menção do cumprimento com três beijinhos no rosto, preferência do chá condimentado na Tanzânia (hábito que veio com a imigração indiana), nomes de pratos típicos (senene e ugali) e mesmo medidas para uma receita de bolo que fiz questão de destacar! hahaha
Há também comentários sobre vários outros países, como mencionei na parte um, e cada história está permeada por muita sabedoria e esperança… Pois, às vezes, durante a leitura, eu só não conseguia comprar a ideia de que todo mundo soubesse tão bem o que dizer a todo o instante. Não que as personagens sejam (absolutamente) sem defeitos. Há casos de traição, mentiras, segredos, mesmo enganos e confusões, mas quando eles falam parece que tudo é sempre tão bem compreendido.
É uma história que se passa em flores. Tendo alguns relatos cáusticos de contraponto.
Acredito que Parkin, a autora, tenha procurado trazer essa mensagem no subplano, de que o diálogo pode resolver (quase) tudo. O que faz bastante sentido com sua própria história, já que Parkin foi conselheira de sobreviventes em Ruanda por dois anos.
Mas sabe, é bom que seja um romance leve. Não é como só as tragédias merecessem atenção.
Outros pontos que poderiam ser melhorados: não há nada sobre a Zâmbia. A autora nasceu lá! Há comentários sobre filmes nigerianos (têm vários na Netflix), mas só li uma menção brevíssima durante a argumentação de que todos os países enfrentam a aids no capítulo um. As descrições de alguns bolos e vestidos (me senti o meme da Nazaré lendo). E uns detalhamentos gerais que poderiam ficar de fora porque não adicionam muito.
Sobre a autora
Como adiantei Gaile Parkin nasceu na Zâmbia e foi consultora em Ruanda por dois anos após o genocídio. Ela foi conselheira de meninas e mulheres, especificamente, que sobreviveram à guerra civil de 1994. Atuou com consultorias sobre gênero e AIDs e educação em diversos países do continente e escreveu textos para livros didáticos e infantis. Depois é que Gaile começou com livros voltados para adultos, como “Assando bolos…” e, não se assustem, continuações dele.
O livro termina com tudo arrumadinho, bem novela, como disse, mas há continuações da vida de Angel com mais dois livros (ainda não traduzidos): Where Hoopoes Go to Heaven e Kilimanjaro snow. Os títulos poderiam ser Onde boubelas vão para o céu (boubela ou poupa é uma espécie de pássaro) e A neve de Kilimanjaro — é o pico mais alto do continente africano, ao norte da Tanzânia, já na fronteira com o Quênia. Mais uma vez a autora nos levando para além de um único território.
No segundo livro, a história é contada por um dos netos de Angel, Benedict, um menino de dez anos que quer ajudar a avó em seu negócio que não está indo tão bem no novo país em que moram: Essuatíni. Vocês lembram que já falamos deste país? Ele que é o neto do meio, nem tão novo quanto os dois pequenos nem maduro o bastante para as duas mais velhas, é bastante introspectivo e até um pouco solitário. Ainda assim promete ser um livro de aquecer a alma.
Já no terceiro há uma nova personagem: Lovemore. Uma filha que Joseph, filho de Angel, teve fora do casamento e que ficou com a mãe até que esta morreu. Entrar na família de um pai ausente, além de ter perdido a mãe, não é coisa simples de se imaginar, mas esta é a história.
Imagino que o primeiro livro de Gaile não tenha vendido tão bem aqui no Brasil e, por isso, o segundo não tenha sido traduzido. O último, contudo, foi publicado de forma independente, em janeiro deste ano. (O primeiro foi publicado em 2009 e o segundo em 2012.) Talvez, se muitas pessoas se mostrarem interessadas, a editora globo monte uma equipe para traduzir, diagramar e revisar o material.
Na edição de Assando bolos em Kigali participaram Helena Londres, Vivien Hermes, Silvana Marli de Souza Fernandes, Petra Borner e o grupo Crayon Editorial na diagramação.
Acredito que falte um romance de Gaile que se passe na Zâmbia em si, mas tenho interesse nos outros dois.
E vocês, de qual enredo gostaram mais?
Um cheiro e até a próxima carta!