Ilhas Maurícia

“O último irmão”, de Nathacha Appanah

Ju Almeida Cordeiro
Cartografismos
5 min readJul 23, 2020

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Nathacha Appanah. Foto: Juan Carlos Muñoz

Oi, cartografistas! Tudo bom com vocês?

As Ilhas Maurícia possuem uma autora com obra traduzida para o português e mais vários outros que vamos comentar por aqui. Simbora?

Nathacha Appanah nasceu em Mahébourg em 1973 e vive, desde os 25, na França. É jornalista e começou a publicar seus livros em 2003. O primeiro é um romance inspirado na história de sua família: um grupo de indianos politizados que chega a Ilha Maurício para trabalhar numa plantação de açúcar após a abolição em 1835. Em uma entrevista, a autora disse: “Sempre me perguntam de onde eu vim. Esta é a minha resposta”.

Em seu segundo livro, Appanah constrói um romance “impossível” devido a diferenças de classe; e no último — até agora, publicado no ano passado — fala sobre família, prisão e permanecer junto — ou ao menos foi isso que pude entender de algumas críticas.

“O último irmão” é o quarto título da autora e único editado no Brasil. Ele foi traduzido para quinze idiomas e resultou em cinco prêmios para a autora. A história se passa na Ilha, e narra a lembrança de uma das personagens, Raj, de uma amizade verdadeira e infantil à época da Segunda Guerra Mundial.

Embora Appanah tenha se mudado para a França cedo, ela conta que foram os autores mauritanos (Pierre Renaud, Loys Masson and Édouard Maunick) que mostraram a ela a beleza e o amor pelo seu país. Referências à Ilha parecem estar presentes em todas as suas obras.

Há ainda muitos nomes de autores locais e para contar e, entre eles, existe até um nobel.

A lista costuma ser grande (lembram como foi em algumas outras cartas?) por isso acabo deixando para o final, porque você pode ler procurando um nome familiar ou que chame a sua atenção para saber mais. Você e as editoras né, porque se isso facilitar o trabalho delas em trazer mais literatura diversa para cá, ótimo!

Uma das autoras que mais me chamou a atenção, pelo seu trabalho, foi a Ananda Devi. Ela tem ascendência indiana, como a Appanah, e teve um livro traduzido para Portugal.

Eba! Mais um livro em português e opção para o projeto! Certo?

Em parte, sim. O livro só está em estoque lá e é comercializado em euro. Ainda há as diferenças no modo em como é feita a tradução. Algumas palavras — e até expressões — possuem sentido diferente e quem quiser ler o livro da Ananda precisa lembrar disso.

Outros artistas mauritanos são: o político, dramaturgo, poeta e defensor da língua crioula mauritana Dev Virahsawmy, o romancista Carl de Souza, a jornalista e escritora Shenaz Patel, a escritora Ananda Devi, a quadrinista Gabrielle Wiehe, a ilustradora Iloë (Christine Gufflet), os poetas Robert-Edward Hart, Khal Torabully e Sedley Richard Assonne.

E ainda: Joëlle Maestracci, Abhimanyu Unnuth, Catherine Boudet, Jeanne Gerval-Arouff, Stephan Hart de Keating, Marie-Thérèse Humbert, Malcolm de Chazal, Bertrand de Robillard, Yusuf Kadel, Barlen Pyamootoo, Marcel Cabon, Vinod Rughoonundun, Shenaz Patel, Amal Sewtohul, Alain Gordon-Gentil, Raymond Chasle, Loys Masson, Marcel Cabon, Xavier Le Juge de Segrais, Léoville L’Homme e Edouard Maunick.

E, sem mais delongas hahaha, temos o nobel! J. M. G. Le Clézio é franco-mauritano! Seu pai nasceu na Ilha e sua mãe é francesa. Em 1940, quando o autor nasceu, Maurícia vivia sob domínio inglês e essa era sua segunda nacionalidade, mas com a independência da Ilha, em 1968, a cidadania inglesa de seu pai foi revogada. Le Clézio é, sim, publicado no Brasil e tem diversos títulos traduzidos. Um deles, inclusive se chama, “A Quarentena”, mas fugi dele como o diabo da cruz haha

Não o escolhi como “o nome” deste país, neste primeiro encontro ao menos, por perceber que a vivência dele é muito mais parecida com a de alguém de fora da Ilha. Ele é tido como um grande viajante e suas obras se passam em vários lugares, o que é ótimo e não duvido que ele escreva muito bem.

Mas a ideia de viajar por essas narrativas é ser acompanhada e apresentada ao lugar por alguém que possua um forte laço com ele. Eu quero tudo, menos que a gente pegue uma história sob o olhar do exótico, de quem está vendo um leão por trás de um vidro. Não, quero é que a gente sinta o que é ser esse leão com o que tiver de bom e de ruim nisso.

Aqui a proposta de viagem é pra mergulhar e não passar meia hora no ponto turístico e tirar fotos. E eu acredito que a gente pode se divertir muito também. Não é porque a proposta é intensa que ela vai ser menos prazerosa haha

Que o local não seja apenas um cenário bonito, mas que a gente possa caminhar e conhecer mesmo o ambiente através da história. Ao menos, é a intenção.

Minha mãe foi a chance da minha vida, o que a existência me ofereceu para me manter nos trilhos, no bom caminho um pilar de força, de bondade, de constância e de renúncia, para me fazer compreender que havia outras coisas no mundo, e, com ela ao meu lado durante a minha infância, eu não me tornei louco nem maldoso nem desesperado.

Forte, não é?

A história é sobre a amizade desses dois garotos, um órfão judeu preso e um menino pobre que perdeu seus dois irmãos, mas a figura dessa mãe é uma das mais bonitas que já vi. Com um marido violento e sofrendo dessa perda sem nome de seus filhos, ela preserva uma intimidade com a natureza que ameniza a fome e as dores da sua família. Mesmo sem ser o foco da narrativa, ela demonstra uma sabedoria vivaz, latente em cada descrição.

Ela não foi nomeada, mas acho bonito que permaneça assim, como se dessa forma ela pudesse ser uma mãe universal. Claro que na história há algumas definições bem particulares: sua família é hindu e vive na Ilhas Maurícia, mesmo assim penso nela como uma personagem que vive dentro de nós, como um arquétipo, ou uma das personagens das histórias contadas em “Mulheres que correm com os lobos”. (Leiam também, vale muito!)

Como disse antes, este livro foi traduzido para diversas línguas e acredito que uma das principais razões foi a inteligência da autora em explorar um fato histórico pouco conhecido para falar também sobre a pobreza dentro da Ilha, a violência doméstica, a culpa, a infância e a perda.

David é um menino judeu órfão que está preso na Ilha, mas o local não é um campo de extermínio. Desventuras levaram um grande grupo de judeus, que tentavam escapar da perseguição alemã, a serem deportados para a Ilha, que era então uma colônia inglesa. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, eles são autorizados a voltar, mas já havia se passado quatro anos e muitos também morreram ali.

David é um deles.

Raj, o narrador, relembra a história da sua vida na velhice, após ter sonhado com seu amigo. Não vou negar que é bem dolorido, mas há beleza nessa história também.

Foi uma viagem melancólica, mas sou grata a todos os envolvidos que permitiram que ela fosse possível.

À autora Nathacha Appanah, à tradutora Joana Angélica d’Ávila Melo, aos revisores Lucas Bandeira de Melo, Gratia Maria Neri Domingues e Onézio Paiva e à editora Suma de Letras.

E, vocês, topam entrar nessa viagem?

Cheiro,

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Ju Almeida Cordeiro
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