Cartório com delicadeza

Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza
5 min readJun 17, 2020

Uma tentativa dinâmica de apurar as funções sociais das serventias extrajudiciais.

São nos cartórios extrajudiciais que acontecem importantes fenômenos da vida humana. Registro de nascimento, registro do primeiro imóvel, casamento, divórcio, usucapião extrajudicial, registro de óbito, entre outros. Todo mundo, pelo menos em algum momento da vida, terá que passar por um cartório.

Tradicionalmente os serviços cartoriais são vistos como excessivamente burocráticos, na conotação pejorativa do termo. Há dados que comprovam a insatisfação de clientes com o serviço classificado como caro, burocrático e prestado de maneira ineficiente. Estas são resistências que tem ganhado espaço para discussão em meio ao avanço da inteligência artificial, Big Data e blockchain — que em curta análise prometem substituir a segurança de dados e registros ofertadas pelas serventias extrajudiciais.

Mas não é bem assim. Cartórios buscam contínua evolução e adaptação às circunstâncias, como a pandemia do novo coronavírus que acelerou a edição do Provimento 100/2020 do CNJ [1] — que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado. O sistema notarial tem prerrogativa de atribuição de fé pública e passa a exercê-la em meio eletrônico evitando a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial, comprometendo a segurança jurídica do ato.

O aprimoramento tecnológico que se materializa, por exemplo, nesta regulamentação do intercâmbio de documentos e tráfego de dados é um excelente caminho, mas não o único para o fortalecimento dos cartórios enquanto prestadores de serviço público. É preciso enxergar mais fundo, para chegarmos à prática do que Goethe [2] chama de “um empirismo delicado, que se faz absolutamente idêntico ao objeto, tornando-se uma verdadeira teoria”. A teoria a que o pesquisador alemão se refere deve ser entendida no sentido dos antigos gregos como uma “visão da mente” ou “contemplação” [3] e não no sentido que a conhecemos na ciência moderna.

O “Cartório com delicadeza” surge de uma paráfrase intuitiva sobre o conceito de “empirismo delicado”. Goethe ao observar a natureza desenvolveu uma forma própria de fazer estudo científico, que não deve estar apegada primordialmente à processos e padrões técnicos, mas, antes disso, a análise dos fenômenos por si mesmo: 1. valorizando o empirismo, que é o conhecimento ganho através da experiência ou da observação sensorial, mas sem afastá-lo do significado que atribuímos àquilo que sentimos ou vivenciamos; 2. mergulhando tão intensamente no objeto de estudo que nos descobrimos idênticos a ele e passamos a ser um só mundo — o que implica dizer que, no entendimento dos pesquisadores Allan Kaplan e Sue Davidoff [4], nossa abordagem não pode estar preenchida por julgamentos ou pressupostos.

O mundo dos fenômenos cartoriais não é estático, está mudando e se movendo todo tempo: usucapião extrajudicial é reconhecida e garante o direito à moradia, ata notarial ganha força de prova judicial, casais homoafetivos se casam, pessoas transgênero assumem o sexo/gênero e o prenome que lhes é de direito sem necessidade de laudo médico, famílias são constituídas de novas maneiras através da filiação socioafetiva. O sentido do “Cartório com delicadeza” é estudar profundamente os serviços cartoriais a partir de uma prática social reflexiva. Para muitos a reflexão parece uma perda de tempo, mas se não pararmos para refletir e entender os instrumentos que temos e a serviço de que e de quem estamos, como emergir (ou permanecer) enquanto instituição progressista e necessária a população em geral?

Exercer cartório com delicadeza quer dizer aprofundar-se nos fenômenos. A prática da reflexão exige tempo, paciência e uma intenção clara [5] para melhorar a qualidade de nossas ações externas. Como um guia para a construção de novos olhares e percepções, o Cartório com delicadeza sustenta-se em três eixos de estudo:

  1. Comunicação não-violenta para cartórios: perspectivas notariais e registrais a partir dos estudos de Marshall B. Rosemberg.
  2. Tecnologia: e-notariado e outras ferramentas digitais, burocracia positiva e relações virtuais humanizadas.
  3. Direitos humanos e prática notarial e registral: família e diversidade, perspectivas de gênero, direitos lgbtqia+, regularização fundiária no Norte do Brasil.

Os três eixos são alicerçados pela técnica jurídica exigida em tudo que gira em torno do sistema cartorial. Como aprendizagem a partir da perspectiva do empirismo delicado de Goethe, deve-se lembrar que cada serventia extrajudicial está inserida em uma realidade diferente, tanto financeira, quanto em outros aspectos que compõe as diferenças regionais. A replicabilidade de processos por si só não entrega soluções, pois a intenção é que o projeto instrumental, diferente do que se espera enquanto processos pré-determinados, aumente as possibilidades do ser humano dentro de um cartório, tanto internamente (nível de gestão de pessoas) quanto na entrega dos serviços.

Esta não é a busca de uma fórmula específica para fazer cartório, mas uma tentativa dinâmica de ampliar o grau de conscientização sobre a função social das serventias extrajudiciais. Montar um planejamento de intervenção em cartórios para atingir determinadas metas sem profunda reflexão crítica é negar fundamentos fenomenológicos de mudança que são base do empirismo delicado de Goethe. É preciso enxergar cartórios para além de certificações, por exemplo, que facilmente seriam substituídas pela tecnologia de blockchain. Cartórios tem capital intelectual humano — e isso não é uma commodity tecnológica passível de substituição.

A finalidade do “Cartório com delicadeza” é desenvolver formas de pensamento e percepção que integram pensamento crítico, autorreflexivo e observação cuidadosa dos fenômenos que passam dentro de um cartório através dos eixos definidos como orientadores da pesquisa: comunicação não-violenta, tecnologia e direitos humanos. Esta é uma maneira experimental de realização da função social dos cartórios como instrumentos eficientes, seguros e delicados de consecução da paz social.

Referências

[1] BRASIL, 2020. Provimento 100/2020 CNJ. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original222651202006025ed6d22b74c75.pdf Acesso em 16 de junho de 2020.

[2] MILLER, D. (Ed). (1995). Goethe: Scientific studies (Collected Works Vol. 12). Princeton: Princeton U. Press.

[3] HOLDREGE, Craig. Doing Goethean Science. Janus Head 8.1, 2005; Disponível em: https://www.natureinstitute.org/txt/ch/Practicando.pdf Acesso em 15 de junho de 2020.

[4] [5] KAPLAN, Allan; DAVIDOFF, Sue. O Ativismo Delicado. Proteus Initiative. África do Sul, 2014. Disponível em: http://www.institutofonte.org.br/sites/default/files/O%20Ativismo%20Delicado%20-%20Final%20PDF%20version%202014.pdf Acesso em: 13 de junho de 2020.

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Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza

Construindo um espaço de efetivação de direitos no @cartoriocurionopolis. Advocacy no Instituto Cartório com Delicadeza.