Mudança de gênero e nome: cartórios e direitos da pessoa transgênero.

Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza
5 min readJun 25, 2020

“Um pai enfrentou dificuldades no uso de prenomes femininos para se referir à filha trans, e foi parar na terapia. “Por fim, o terapeuta perguntou: ’Em sua opinião, ele fica feliz pelo fato de o senhor insistir em chamá-lo de rapaz? Claro que a resposta era não. Mas quando ele me perguntou se meu filho ficaria feliz se eu me referisse a ele como ela, a resposta foi um claro sim. Ele então me perguntou o que havia de mais importante para mim do que a felicidade do meu filho. Comecei a chorar. Meu medo do ridículo, junto com o medo que eu tinha de que ele caísse no ridículo, me fazia negar sua felicidade.” [1]

Esse diálogo foi retirado do livro “Longe da árvore”, estudo em que Andrew Solomon [2] aprofunda o olhar nas relações entre pais, filhos e a busca da identidade. O pesquisador define transgênero como qualquer pessoa cujo comportamento se distancia de maneira significativa das regras aceitas para o gênero indicado pela anatomia dessa pessoa ao nascer.

As ameaças ao gênero são vistas como ameaças à ordem social, disso decorre uma infinidade de preconceitos e violências. Em 2019, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), pelo menos 124 pessoas transgênero foram assassinadas no Brasil em contextos de transfobia [3]. No gráfico abaixo [4], com dados do ano de 2019, é possível observar que o Brasil lidera os casos de assassinatos de pessoas trans na América Latina e Caribe, seguido do México.

Nas palavras de Raewyn Connel [5] ir em direção à transição é uma tentativa de encerrar a intransigência de gênero tanto como uma estrutura da sociedade quanto uma estrutura na vida pessoal, que leva a altas taxas de suicídio. Evoluções normativas e políticas públicas que compreendem a diversidade precisam ser protegidas e aplicadas com comprometimento e seriedade.

Com a edição do Provimento 73 [6], em 28 de junho de 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a alteração de gênero e prenome em cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) sem a necessidade de decisão judicial, laudo médico, laudo psicológico, cirurgia de redesignação e tratamentos hormonais. Ou seja, atualmente é possível que uma pessoa trans faça substituição de seu gênero e nome diretamente em cartório.

A normativa do CNJ foi editada considerando:

  1. O direito ao nome, à liberdade pessoal, à honra, à dignidade (Pacto de San Jose da Costa Rica).
  2. A Opinião Consultiva n. 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que trata da identidade de gênero, igualdade e não discriminação e define as obrigações dos Estados-Parte no que se refere à alteração do nome e à identidade de gênero.
  3. O direito constitucional à dignidade (art. 1º, III, da CF/88), à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem (art. 5º, X, da CF/88), à igualdade (art. 5º, caput, da CF/88), à identidade ou expressão de gênero sem discriminações.
  4. A decisão da Organização Mundial da Saúde de excluir a transexualidade do capítulo de doenças mentais da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).
  5. A decisão do Supremo Tribunal Federal que conferiu ao art. 58 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, interpretação conforme à Constituição Federal, reconhecendo o direito da pessoa transgênero que desejar, independentemente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, à substituição de prenome e gênero diretamente no ofício do RCPN (ADI n. 4.275/DF);

O art. 2° do Provimento 73/2018 do CNJ dita que toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida. O procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o cartório, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante averbação do prenome, do gênero ou de ambos.

A pessoa requerente deverá apresentar ao cartório, no ato do requerimento, diversos documentos previstos no Provimento 73/2018. Suspeitando de fraude, falsidade, má fé, vício de vontade ou simulação quanto ao desejo real da pessoa requerente, o registrador do cartório fundamentará a recusa e encaminhará o pedido ao juiz corregedor permanente.

Vale olhar as perguntas e respostas sobre o tema organizadas nesta publicação aqui.

Referências:

[1] [2] SOLOMON, Andrew. Longe da árvore. Pais, filhos e a busca da identidade.

[3] Antra — Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-01/brasil-registra-124-assassinatos-de-pessoas-transgenero-em-2019 Acesso em: 23 de junho de 2020.

[4] Observatório Trans Disponível em: https://storage.googleapis.com/wzukusers/user-31335485/documents/5e31787b4fbf1PS1Zo2i/informe.pdf Acesso em: 22 de junho de 2020

[5] CONNEL, Raewyn. PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015.

[6] CNJ, Provimento 73/2018. Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/2018/06/29/provimento-no-73-do-cnj-regulamenta-a-alteracao-de-nome-e-sexo-no-registro-civil-2/ Acesso em: 22 de junho de 2020.

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Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza

Construindo um espaço de efetivação de direitos no @cartoriocurionopolis. Advocacy no Instituto Cartório com Delicadeza.