Testamento vital e Covid-19: é preciso lidar com a finitude da vida.

Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza
6 min readMay 28, 2020

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“Para morrer precisamos apenas estarmos vivos.” É comum ouvir esta frase e tem sido dita com mais frequência no cenário de pandemia mundial. Ainda assim, evita-se falar de morte. Entre os motivos está o culto à ideia de que isso estimula e atrai a brevidade da vida. A morte é um tabu: mal conversado e mal planejado.

Uma pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) e realizada pelo Studio Ideias [1], em 2018, mostrou que 68% dos brasileiros e brasileiras têm dificuldades para lidar com a morte. Para mais de 48%, falar sobre o assunto é depressivo e para 27,8% é mórbido. O medo da morte negligencia a possibilidade de nos prepararmos para o fim da vida.

No campo do Direito, a tradição sobre preparar-se para morrer está ligada há mecanismos de planejamento sucessório, ou seja, instrumentos que auxiliam nas decisões sobre a destinação do patrimônio daquele ou daquela que morreu. O testamento é a principal forma de expressão e exercício da autonomia privada, definido por Tartuce [2] como o negócio jurídico pelo qual o testador ou testadora faz disposições de caráter patrimonial (principalmente) ou extrapatrimonial, para depois de sua morte.

Em meio a pandemia, a finitude da vida tem nos olhado mais de perto: o tempo de pensar em morte é hoje. Com a possibilidade de quadros de agravamento clínico da COVID-19 está em voga o Testamento Vital. Diferente do testamento mais conhecido, o de destinação patrimonial, o testamento vital é um documento através do qual uma pessoa deixa registrado que tipo de medicamento e tratamento quer ou não receber em caso de encontrar-se sem possibilidades de expressar sua vontade por conta de doença incurável.

O que é Testamento Vital?

Testamento Vital é, na definição dada pela pesquisadora e advogada Luciana Dadalto [3], um documento, redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitada de manifestar livremente sua vontade.

Onde surgiu o Testamento Vital? Tem regulamentação no Brasil?

De acordo com Dadalto, o documento teve origem nos Estados Unidos, na década de 60 e já é regulamentado em diversos países. No Brasil não há legislação específica que regule o tema. Por enquanto, as considerações de ordem normativa relacionadas ao assunto dizem respeito somente a Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM) [4] que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.

Testamento vital e Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) não são a mesma coisa. As diretivas antecipadas são instruções escritas pelo indivíduo para ajudar a orientar os cuidados médicos, sendo o Testamento Vital e a Procuração para Cuidados de Saúde espécies destas. De acordo com Dadalto, quando ambos estão previstos em um único documento, são chamados de DAV. Recomenda-se, portanto, que haja a nomeação de um ou uma procurador ou procuradora de saúde no testamento vital, que decidirá conforme a vontade do paciente quando este estiver impossibilitado de manifestar-se.

Quando, como e quem pode fazer um Testamento Vital?

O melhor momento para escrever um testamento vital é o momento presente. Requer o reconhecimento da finitude da vida, que pode ser um mergulho profundo em autoconhecimento para construção da autodeterminação. Não há necessidade de estar doente, pelo contrário, é mais prudente que se escreva com a tranquilidade de quem não está acometido por nenhuma doença. Tem morte que não avisa quando vai chegar.

Para a confecção do testamento vital é necessário ter mais de 18 anos, não há formalidades e recomenda-se o auxílio de um médico ou uma médica, assim como de advogado ou advogada, uma vez que desejos que contrariem a legislação brasileira e estejam em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica acabam sendo invalidados.

Não há a necessidade da lavratura da escritura pública de testamento vital em cartório, uma vez que não há legislação que o regulamente no Brasil, contudo, para conferir segurança jurídica ao ato os cartórios de notas estão autorizados a praticá-lo. Levar ou não ao cartório ainda é uma diligência a ser decidida em conjunto com o advogado ou advogada de confiança do testador ou testadora.

A importância da consciência sobre a morte e a autonomia do indivíduo

É natural que pouco se fale sobre o Testamento Vital no Brasil — ainda é pequeno o número de profissionais que lidam com as questões de cuidar do bem-morrer. A médica paliativista Ana Claudia Quintana Arantes [6] ressalta que as conversas sobre como queremos morrer deveriam ser corriqueiras entre familiares, aquelas que acontecem na mesa de almoço ou nos fins de semana de lazer.

Conforme Martinez e Lima [5], o princípio da dignidade é o fundamento do exercício da autonomia privada em situações de terminalidade. Escrever um testamento é buscar resguardar esse direito, pois expressa a manifestação da vontade do indivíduo — fruto de um mergulho sério e profundo sobre procedimentos médicos que poderá ser submetido ou submetida — e que informará familiares e equipe hospitalar sobre seus desejos finais.

É necessário que se caminhe mais consciente e com mais orientações sobre o desfecho da vida. Em tempos de Covid-19 a morte, mais que nunca, tornou-se um evento solitário. Estar preparado ou estar preparada requer a consciência de autonomia do corpo.

A elaboração do luto em tempos de Covid-19 está sendo reinventada: não há rituais tradicionais, não há abraços, não há colo e proximidade física. Nestas reinvenções há a necessidade de lidarmos de frente com o fato de que estamos diante de uma doença que ameaça a continuidade da vida e que no desfecho desta está a morte. E é preciso falar sobre a autonomia de nosso corpo diante da morte — o que ainda facilita a decisão de familiares que devem respeitar a vontade de quem previamente deixou escrito o que gostaria ou não de receber como tratamento.

Para mais informações:

Citação do médico disponível em: https://www.inquirer.com/health/coronavirus/coronavirus-covid19-end-of-life-planning-living-will-20200401.html

Referências:

[1]- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45596113 , acesso em 26 de maio de 2020.

[2]- TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil — Vol. Único — Edição: 10 — Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.

[3]- DADALTO, Luciana — https://testamentovital.com.br/

[4] — CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1995/2012, acesso em 27 de maio de 2020.

[5] MARTINEZ, Sergio; LIMA, Adaiana. O Testamento Vital e a Relação Médico-Paciente na perspectiva da Autonomia Privada e da Dignidade da Pessoa Humana. Rev. Bioética y Derecho, Barcelona , n. 37, p. 103–120, jun. 2016 . Disponible en <http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1886-58872016000200008&lng=es&nrm=iso>. accedido en 28 mayo 2020. http://dx.doi.org/10.1344/rbd2016.37.16153.

[6] — ARANTES, Ana Claudia — A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2019.

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Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza

Construindo um espaço de efetivação de direitos no @cartoriocurionopolis. Advocacy no Instituto Cartório com Delicadeza.