Violência patrimonial contra a mulher e cartórios extrajudiciais: 3 formas de atuar em proteção a mulher.

Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza
11 min readJun 8, 2020

1. O que é violência patrimonial contra a mulher?

A violência física é a forma mais conhecida entre as violências previstas pela Lei Maria da Penha. Mas não é a única. Além da física, há a violência sexual, violência moral, violência psicológica e violência patrimonial. Não são novos crimes, mas uma nova visão sobre os mesmos crimes sancionados no Código Penal [1], desde que praticados contra a mulher em razão do gênero.

A violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer necessidades da mulher [2].

Nos conflitos conjugais, a destruição de bens materiais e objetos pessoais nos casos de separação/divórcio são as violências mais comuns. Prática como estas são cometidas com a intenção de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na relação supostamente amorosa. No entanto, a violência patrimonial não se limita a estas condutas [3]: a falta injustificada de pagamento de pensão alimentícia, a sonegação de bens comuns partilháveis em caso de separação seja pela ausência de informação sobre sua existência ou pela confusão patrimonial com pessoa jurídica (desconsideração inversa da personalidade jurídica — REsp 1.522.142-PR — Inf. 606), o uso de procuração conferida em confiança pela mulher para realizar transações financeiras que a prejudicam, a aquisição de bens usando o cartão de crédito da mulher e o não pagamento após a separação, a pressão emocional exercida sobre a mulher para que a divisão de bens seja feita rapidamente e com advogado único contratado pelo ex-companheiro, acarretando perdas de direitos financeiros, entre outros, são exemplos de violência patrimonial contra a mulher.

De que maneira cartórios extrajudiciais podem atuar como instrumentos de prevenção à violência patrimonial contra a mulher?

2. A relação entre cartórios e proteção da mulher contra violência patrimonial em razão de gênero.

Cartórios extrajudiciais prestam serviço público através de um particular. Leonardo Brandelli [4] ressalta que, diante do Estado neoliberal e da economia de mercado, a atividade notarial deve coibir abusos na esfera das negociações privadas, funcionando como um meio de intervenção estatal. Esta é uma atuação mais segura, mais barata e muito menos traumática, já que atua na prevenção da instalação de conflitos.

Ao Direito não resta somente servir à economia de mercado — Brandelli ressalta que a atuação dos profissionais de cartório deve ter em conta os “desprestigiados pelo mercado”, como os hipossuficientes e as minorias. Isso quer dizer reconhecer a identidade individual e as diferenças de cada um, conferindo certeza jurídica preventiva aos direitos subjetivos, que são as faculdades ou prerrogativas que o ordenamento jurídico reconhece às pessoas.

Havendo uma parte hipossuficiente na relação negocial deve a tabeliã/o orientá-la com muito mais afinco, com a finalidade de tornar a relação jurídica a mais equânime possível. Ou seja, é dever da cartorária/do cartorário minimizar as desigualdades existentes, orientando e zelando com muito cuidado, sobretudo a quem está em situação mais vulnerável, para que a manifestação das vontades sejam efetivamente livres e protegidas.

A abordagem de Flávia Biroli [5], que identifica a importância da reflexão crítica sobre a dualidade entre esfera pública e esfera privada, é fundamental nessa discussão. A tipificação da violência doméstica é um exemplo de que a interferência na vida privada é necessária para garantir cidadania e integridade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial às mulheres.

Mulheres, principalmente mulheres negras, pobres, indígenas, quilombolas, não-brancas [6], encontraram no percurso histórico-jurídico brasileiro marcas perversas que segregam, discriminam e desigualam em razão do gênero, como consequência, ressalta Ediliaine Figueredo [7], foram privadas de exercer o papel de cidadã e receber proteção estatal para a prevenção de abusos e de violência de diversas naturezas.

A atuação dos cartórios extrajudiciais na prevenção da violência patrimonial contra a mulher é uma discussão que precisa ser aprofundada. Trocar as lentes tradicionais de estudo e solução de conflitos que tem tradição jurídica sexista é uma necessidade urgente.

3. Intervenção cartorial e prevenção a violência patrimonial contra a mulher: 3 formas de atuação preventiva.

Para aprofundar o assunto sobre cada uma das 3 formas de atuação:

  1. Produção de provas através de ata notarial: documentar em cartório a exclusividade da posse sobre bem comum (usucapião familiar) e comprovação da confusão patrimonial (desconsideração da personalidade jurídica) que pode ser utilizada para ocultar patrimônio da cônjuge/companheira em caso de separação.

A ata notarial constitui importante instrumento de prova. Sua previsão expressa na legislação brasileira tem origem no ano de 1994 (art. 7º Lei 8935/94) e em virtude de sua crescente utilização recebeu previsão expressa no art. 384 do atual Código de Processo Civil.

Portanto, há mais de décadas a ata notarial tem sido utilizada para comprovação, com fé-pública, de fatos que podem ser traduzidos em imagens, sons ou mesmo para qualificar o depoimento de uma testemunha. Todavia, ainda não tem recebido a mesma atenção a versatilidade desse importante meio de prova para a comprovação de situações jurídicas complexas.

No direito nos deparamos com comandos normativos de difícil comprovação. São casos onde, isoladamente, um simples testemunho, um documento esparso, uma gravação ou mesmo a captura de uma imagem não possuem aptidão para servir como meio apto a comprovação de um direito ou sua violação.

Como exemplo dessas situações estão dois conceitos de grande relevância no combate à violência patrimonial: o abandono do lar (art. 1.240-A, CC) e a confusão patrimonial (art. 50, CC).

  • O abandono do lar é um dos requisitos para a usucapião familiar que possibilita a aquisição da meação, sobre o imóvel urbano, em dois anos. Contudo, sua aplicação exige além da comprovação do abandono do imóvel que: o cônjuge/companheiro não tenha voltado a morar no imóvel neste período e que ele não tenha exercido a posse indireta sobre o bem, ou seja, que ele não tenha arcado com custos ou obras necessárias à manutenção do imóvel. Este seria um procedimento semelhante à ata notarial para fins de usucapião (art. 216-A da Lei 6.015/73). Não se trata de prova impossível. A ata notarial seria a soma do testemunho da possuidora (mulher que continua na casa/apartamento), vizinhas e vizinhos, confrontantes, prestadores de serviço, descrição dos comprovantes de despesas e outras provas que a parte e sua advogada entendam relevantes.
  • A confusão patrimonial configura uma das exigências para a suspensão da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para a desconsideração da personalidade jurídica. É o que determina o art. 50 do CC. Existem casos, como aquele enfrentado pelo STJ no REsp 1.522.142-PR (informativo 606), onde uma das partes utiliza a pessoa jurídica, da qual faz parte, para esconder patrimônio e evitar sua partilha em casos de divórcio. Em situações como estas a doutrina e a jurisprudência tem reconhecido a possibilidade da desconsideração inversa da pessoa jurídica, de forma a permitir que os bens indevidamente sonegados possam ser partilhados. Dessa maneira, a comprovação da confusão patrimonial torna-se a única maneira de evitar a sonegação patrimonial em tais casos. Por isso é de grande importância que a vítima e sua procuradora disponham do maior número de provas possíveis e, que, igualmente, consigam relacionar as provas juntadas em um instrumento coeso e detalhado capaz de indicar a confusão dos bens pessoais com os da pessoa jurídica.

Logo, em situações como a acima descrita a ata notarial destaca-se. Isto porque além de conferir sistematicidade a um conjunto de documentos, depoimentos e imagens, pode somar a estes o testemunho imparcial da tabeliã/do tabelião sobre o teor do conjunto probatório de forma a facilitar a compreensão do juízo e esclarecer eventuais dúvidas.

2. Negócios imobiliários e segurança cartorial: a importância da intervenção notarial para prevenir abusos contra a mulher.

Para para fazer negócios imobiliários, dois momentos consecutivos precisam ser identificados:

  • Momento contratual: é o momento em que as partes têm autonomia privada, ou seja, liberdade para ajustar o pagamento e estipular cláusulas; um exemplo é um contrato de compra e venda de um imóvel. Este momento acontece em cartório de notas.
  • Momento do registro imobiliário: nesta segunda fase os negócios ganham publicidade, já que o registro em cartório de imóveis garante a presunção de que terceiros passam a ter conhecimento do negócio — portanto, as vontades das partes atingem seus efeitos legais (ou seja, ocorre a transmissão da propriedade ou oferecimento do bem imóvel em garantia). Este momento acontece em cartório de registro de imóveis.

A Tabeliã/o tabelião (oficial que responde pelo cartório de notas) intervém no primeiro momento, ou seja, na confecção do ajuste de vontades, atuando como uma fiscal do cumprimento dos requisitos legais, garantindo o acesso isonômico de informações sobre os efeitos e alcance dos termos negociais e zelando pela plena liberdade das partes que, uma vez informadas, poderão efetivamente decidir a conveniência ou não de um contrato de compra e venda ou a justeza dos termos da partilha resultante do divórcio.

É comum que casais que objetivam formalizar a extinção de união estável ou pôr fim ao casamento compartilhem a mesma advogada ou advogado. Esta prática ocorre por diferentes razões: vínculos de amizade ou familiares, economia de recursos ou por apenas uma das partes possuir condições para arcar com os honorários profissionais. Ou seja, são situações em que, por razões/vínculos prévios, a assessora ou assessor jurídico estará inclinado a atuar de forma mais favorável a uma das partes.

A tabeliã/o tabelião, por sua vez, exerce uma função distanciada do interesse das partes, pois seu dever é promover o equilíbrio e a informação das partes sob pena de responsabilidade civil e administrativa (art. 22 da Lei 8935/94). Logo, tem como dever zelar pelo equilíbrio das partes, vantagens e ônus das condições contratuais, quer dizer: explicar os efeitos dos termos empregados e alertar para eventuais desequilíbrios de forma a oportunizar um consentimento efetivamente informado.

No divórcio extrajudicial, em que haja patrimônio a ser dividido, deve a (o) agente notarial intervir no sentido de explicar as partes sobre os efeitos patrimoniais do casamento, quer dizer, os efeitos do regime patrimonial escolhido pelo casal sobre o patrimônio adquirido atentando para a origem de sua aquisição, gratuita ou onerosa, e explicar se há ou não meação sobre determinado bem. Após detalhado exame sobre o regime de bens escolhido, data do casamento e da aquisição dos bens, conferir juntamente às partes e seu(s) assessores jurídicos o total do patrimônio a ser partilhado e a maneira como se distribuirá o patrimônio. Além do que devem recusar-se a lavratura de atos quando houver prejuízo a um dos cônjuges ou dúvidas sobre a sua declaração de vontade (art. 46 da Resolução nº 35 do CNJ).

A intervenção notarial é imprescindível para prevenir e coibir abusos negociais — e para que seja oportunizado à mulher a possibilidade de contar com uma assessoria imparcial tal como é a da tabeliã. Daí a importância da:

  • formalização da união familiar: tornar pública a união, a data de seu início e o regime de bens adotado. Assim, as partes com quem negociarem estarão cientes, ou deveriam saber, da exigência legal da participação de ambos os cônjuges/companheiros na elaboração do negócio sob pena de sua invalidade.
  • lavratura de escritura pública em caso de negócio imobiliário: prova pública da aquisição de imóvel, o que previne a venda do bem sem a participação da cônjuge/companheira;

3. A publicidade registral e a proteção de direitos: registro de imóveis em cartório protege a mulher em caso de divórcio/viuvez.

O registro do imóvel é a segunda fase, ou seja, a fase da aquisição da propriedade. A publicidade registral, que ocorre com o registro, é fundamental e incontestável para a proteção das partes e de terceiros. É com o registro que se informa aos órgãos fiscais, Poder Judiciário e outros particulares sobre a real titularidade dos direitos sobre determinado imóvel.

Para o tema da proteção patrimonial da mulher sua importância é considerável. Com o registro imobiliário dos bens é possível saber, com uma busca em cartórios, quais bens estão em nome do companheiro/marido, bem como saber o momento de sua aquisição e a que título foi adquirido o bem (de forma onerosa ou gratuita, por exemplo, por meio de doação) — informações de importância no direito das famílias patrimonial.

O registro protege, além da meação do cônjuge/companheiro, o direito à herança da viúva/companheira. Isso porque, uma vez registrado, o bem só poderá ser vendido após a realização de inventário. Desta maneira, o direito à herança da viúva não poderá ser ignorado por outros herdeiros, incluindo filhos unilaterais.

O registro imobiliário possui grande importância no combate à violência patrimonial. Funciona como meio de informação da situação patrimonial do companheiro/cônjuge e evita a dilapidação do patrimônio comum. Entretanto, por razões sociais e culturais ainda constitui uma realidade distante para maioria das brasileiras e brasileiros, em especial, as/os paraenses.

No Pará, menos de 50% das propriedades urbanas individuais são formalmente registradas, quadro resultante, dentre outros motivos, pelo baixo poder aquisitivo da população e pelo caos fundiário das terras paraenses, em sua maioria públicas e com indefinição de titularidade (União, Estado, Município ou particular). No Piauí e em São Paulo calcula-se que sejam menos de 70%. Sendo que este cenário, acima descrito, é ainda pior em zonas rurais. [8]

Não há determinação legal que obrigue adquirentes a registrarem seus títulos, contudo, não são poucos os riscos decorrentes da ausência de registro: venda de imóveis para diferentes adquirentes ao mesmo tempo, risco de penhora por débitos do antigo proprietário (o que tem o nome no registro), óbito do alienante que faz a surgir a necessidade de inventário do bem.

Há razões estruturais que dificultam o crescimento dos registros de propriedade, de origem econômica (dificuldades para arcar com custas e impostos incidentes sobre o ato) e jurídicas (indefinição fundiária, déficit jurídico e político que caracterizam zonas periféricas). Todavia, o que os números demonstram é que existe, além de problemas estruturais, motivos culturais e até escusos para o não registro.

A violência patrimonial contra a mulher é favorecida pela informalidade das negociações imobiliárias. O registro público é imprescindível na prevenção da dilapidação de patrimônio, objetivando não dividir valores com a cônjuge/companheira ou ex-cônjuge/ex-companheira. Compreende-se que as relações familiares são plurais e, portanto, não necessariamente atreladas a formalidade, entretanto, em situações de desequilíbrio jurídico e econômico, a lei e a intervenção de agentes públicos, como tabeliãs/tabeliães e registradoras/registradores, são fundamentais para a preservação dos interesses e direitos da parte vulnerável.

Referências:

[1] DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf Acesso em: 1 de junho de 2020.

[2] BRASIL, Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 2 de junho de 2020.

[3] RÉGIS, Mariana. Maternidade e direito [livro eletrônico] Organizadora Ezilda Melo. — 1.ed. — São Paulo : Tirant lo Blanch, 2020. 2Mb : e-book.

[4] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. São Paulo, Saraiva, 2011.

[5] BIROLI, Flávia. Feminismo e Política: uma introdução / Luis Felipe Miguel, Flávia Biroli — 1. ed. — São Paulo: Boitempo, 2014.

[6] LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Florianópolis: Revista Estudos Feministas. vol. 22, nº 3, set.-dez. 2014. Artigo originalmente publicado na revista Hypatia, vol. 25, nº 4, 2010. Traduzido ao português com o consentimento da autora, 2014.

[7] FIGUEIRÊDO, Ediliane Lopes Leite de Maternidade e direito [livro eletrônico] Organizadora Ezilda Melo. — 1.ed. — São Paulo : Tirant lo Blanch, 2020. 2Mb : e-book

[8] BANCO MUNDIAL. Avaliação da governança fundiária no Brasil. Banco Mundial. junho 2014 Relatório: 88751- BR.

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Carla Bichara
cartoriocomdelicadeza

Construindo um espaço de efetivação de direitos no @cartoriocurionopolis. Advocacy no Instituto Cartório com Delicadeza.