Foto de Candy Pop.

De, para

Fabricio Teixeira
Casa de crescer sonhos
4 min readNov 6, 2016

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Oi, filha,

Como foi sua aula? Foi bem na prova de Biologia?

É, eu sei que faz tempo que a gente não conversa. Quando você era pequenininha, eu falava com você e você também não respondia; só emitia grunhidos indecifráveis. Era a música mais bonita da minha vida.

E agora, dezoito anos depois, a história se repete. Eu falo e você não me responde. Eu avanço e você afasta.

Eu sei que tem muita coisa que não precisa ser dita, mas eu preciso ouvir mesmo assim. Eu sou seu pai. É, eu sei que a paternidade não garante direito nenhum a ninguém. É uma empreitada gratuita e sem fim, um dia você vai entender isso. Mas agora, dezoito anos depois, eu preciso ouvir alguma coisa de volta quando falo com você. Se não, é o mesmo que falar com deus.

Quando você era pequena, eu sempre agachava para te ouvir quando você queria falar alguma coisa para mim. Foi uma coisa que eu percebi nas famílias que eu observava por aí: quando os pais não agacham para ouvir os filhos, os filhos acabam falando mais alto, porque é da natureza humana querer ser ouvido. E eu nunca quis que você se transformasse em uma dessas pessoas que falam alto porque precisam ser ouvidas a qualquer custo.

Eu sempre agachei pra buscar sua voz.

Você fez a prova em dupla com a Fernanda, aquela sua amiga? Ah, foi com a Joana. A ruivinha? Não chamava Fernanda? Desculpa.

Teve horas em que eu falhei um bocado, filha, e eu espero que você me perdoe por isso. A paternidade foi também uma empreitada única, no meu caso. E você sabe, nesses casos a primeira chance é sempre a última, e a gente acaba metendo os pés pelas mãos e se atrapalhando todo. É, eu também não entendo a expressão “meter os pés pelas mãos”. Mas é uma dessas coisas que toda gente diz e que a gente acaba repetindo por inércia, você sabe como é. Igual oração.

Você avisou sua mãe que já chegou da escola?

Quando você briga com sua mãe eu me machuco muito, filha. Ela gosta tanto de você. Ela queria te chamar de “Graça”, mas eu não deixei. Eu sei, pode me agradecer por isso. Eu queria te chamar de “Luiza”, porque era o nome da minha primeira namorada (e que sua mãe não nos ouça). Mas aí eu seria obrigado a conviver com a lembrança do amor de outrora, do amor impossível. E chega uma hora que a gente desiste dos amores impossíveis e decide ter filhos que nascem de amores possíveis apenas.

Pensamos tanto no seu nome, filha. Planejamos cada um dos dias de sua vida. Sua mãe e eu sempre acreditamos que amor, sozinho, não bastava. Era preciso cuidado, planejamento. Espero que você não tenha se sentido sufocada por isso.

Mas, hoje, eu preciso ouvir sua voz, filha. Saber como foi seu dia, saber quem é sua melhor amiga e qual música você gosta de ouvir quando se sente triste. Eu gosto das músicas que você ouve, sabia? Sempre evitei me tornar uma dessas pessoas que só gosta das músicas do passado — acho que a gente envelhece mais rápido quando age assim. No fim das contas, a música é um sintoma de uma geração e um reflexo das coisas que essa geração não quer deixar passar em branco.

E eu quero viver essa geração com você, filha.

Desculpe-me se algum dia eu não disse tudo que precisava ser dito. É que ser pai é diferente de ser mãe. Parece que o mundo cobra dos pais que o amor deles seja mais podado, mais contido. Mas, de vez em quando, o amor que eu tenho por você é tão grande que parece que vai derramar. Então eu decido calar, porque na vida eu aprendi que amor deve ser servido na medida certa. Sem falta, nem excesso.

Quer que eu te sirva um suco?

Você está ficando tão parecida com sua mãe, filha. Seus olhos, o contorno do seu queixo, seu pescoço. Eu espero que um dia um rapaz se apaixone por você como eu me apaixonei por ela. De verdade. Não, fique tranquila, eu não vou ser um pai ciumento. Esse esterótipo de pai ciumento morreu na geração passada, junto com os DVDs e as bancas de jornal. DVD era um disquinho redondo que a gente usava para gravar filmes e músicas. Eu tenho alguns guardados, depois eu posso te mostrar. Banca de jornal era uma espécie de barraquinha onde se vendiam jornais e revistas, quando as pessoas ainda gastavam papel para isso.

Poxa, filha, olha para mim enquanto eu falo com você.

Você já preencheu sua inscrição para o vestibular? No meu tempo, a gente tinha que fazer uma prova para mostrar o quanto a gente sabia sobre as coisas, acredita? Eu sei. Mas as coisas mudam, filha, e daqui a alguns anos você já vai ser uma mulher formada. E pensar que um dia desses eu estava aprendendo a trocar suas fraldas.

Ok, desculpa. Eu não quis soar nostálgico. Quer que eu esquente o almoço pra você? Eu sei, eu sei que você já sabe fazer isso sozinha, mas é que eu estou aqui sem fazer nada, eu pensei que… Tá, você esquenta então.

Só isso? Pega um pouco mais de arroz, filha.

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