Na casa dos sonhos sempre cabe mais um

Fabricio Teixeira
5 min readNov 6, 2016

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Reunião no trabalho. Todos sentado ao redor da grande mesa fingindo estar atarefado com algum email importante no celular. Mas, todo mundo sabe que, nessas últimas espiadas no celular antes das reuniões começarem, as pessoas lêem os recados dos amigos no facebook ou respondem a um email do namorado.

A reunião começou e a luz foi apagada, para que todos pudessem ver a apresentação que rodava, cheia de cores, no projetor.

Era só ter uma reunião dessas com as luzes apagadas e o projetor ligado que eu sentia vontade de comer pipoca.

“A Andressa vai mostrar pra vocês o que a gente andou fazendo nas últimas semanas. Tudo pronto, Andressa?”

Tudo.

Nos últimos dois dias, ele quis dizer. Quando se trabalha nesse mercado é assim que funciona: a gente recebe duas semanas de prazo para fazer o trabalho. Na primeira semana a gente não faz nada, porque está ocupado demais com outros projetos. Na segunda semana, a gente não faz nada, mas, dessa vez, é porque está cansado demais pelo trabalho da semana anterior, sabe como é, nessas horas tem sempre algo mais importante para não ser feito. Aí, nos últimos dois dias, a gente trabalha feito um louco, vira a madrugada na agência e chega sorrindo no dia seguinte pra apresentar o que foi possível fazer — numa dessas mesas redondas cheias de gente atarefada.

Oi, gente. Meu nome é Andressa, mas isso vocês já sabem.

Um esboço de riso na mesa.

Bom, quando nós recebemos esse desafio, a primeira coisa que pensamos foi “o que a marca significa para as pessoas?”. Tá dando pra enxergar?

Sim, está ótimo.

Pois então, foi nesse caminho que começamos nossa linha criativa para essa campanha que eu vou mostrar pra vocês…

Mentira. O segundo slide das apresentações é sempre o último a ser feito, cinco minutos antes da reunião começar. É nele que a gente tenta achar justificativa para o monte de baboseiras que vêm a seguir.

Era uma manhã ensolarada de quarta-feira e eu quase conseguia sentir o cheiro da pipoca. Meus dedos estavam engordurados só de pensar. Limpei a gordura imaginária da ponta dos dedos no controle remoto do projetor e olhei bem para ver se ninguém tinha reparado. Claro que não tinham. Estavam tão fascinados com os slides coloridos na tela do projetor que eu poderia começar a falar em esperanto e ninguém iria perceber.

Então acabamos chegando nesse conceito aqui.

Ser publicitária sempre tinha sido meu sonho. Mas não era um sonho de vida. Era igual o sonho de comprar um carro: depois que você o compra, o sonho deixa de ser sonho e passa à desprezível condição de realidade. E aí é preciso acordar cinco minutos antes para fazer o sonho pegar no tranco, é preciso pagar o seguro do sonho e custa caro abastecê-lo. Ah, e os pneus do sonho de vez em quando furam.

Você vai preencher Publicidade como primeira opção ou segunda?

Acho que primeira. E você?

Eu vou colocar Veterinária em primeiro, Publicidade em segundo, História em terceiro.

Entendo…

Na verdade eu não entendia essa linha de raciocínio de Augusto. As opções dele não faziam o menor sentido. As minhas eram muito claras: Publicidade em primeiro, Línguas em segundo e Artes Cênicas em terceiro. Se eu tivesse muita sorte, poderia ficar rica. Se não, corria o risco de ficar inteligente ou louca.

Naquela manhã, os pneus do meu sonho tiram furado. Eu já não acreditava em nenhuma das palavras que saíam da minha boca ali na reunião. Em nenhum dos slides. Era a mesma sensação que eu tive quando ouvi minha voz em um gravador pela primeira vez: as palavras não eram minhas e nunca tinham sido. Eu falava coisas que agradavam a todos ao redor da mesa, menos a mim mesma. Eu podia ver o sorrisinho no rosto do cara do Marketing toda vez que eu falava a palavra “resultados”. E eu percebia que a alegria da mulher de Marca era diretamente proporcional ao tamanho do logotipo da empresa nos slides da projeção.

Qual o seu maior sonho?

Ter orgulho de algo que eu faça. E que seja um orgulho que dure mais do que doze horas.

É. Eu penso nisso às vezes.

Só às vezes? Eu não consigo parar de pensar nisso.

Acho que você precisa de férias.

Acho que eu preciso me conformar. Ou de boas doses de chocolate.

A reunião terminou e os quinze minutos seguintes foram só elogios. Mas, novamente, era uma sensação estranha. Era como se eu estivesse recebendo “Feliz Aniversário” no dia errado, ou como se tivessem me dado uma medalha onde meu nome estivesse escrito com Z ao invés de SS. Agradeci e sorri com os dentes, daquele jeito que eu tinha ensaiado tantas vezes em frente ao espelho depois que percebi que desaprendera a sorrir de verdade.

Você já estudou Antigo Egito? Posso pegar sua apostila emprestada e te devolver na semana da prova?

Não estudei, mas pode pegar.

Eu não acreditava que decorar os nomes das cidades do Antigo Egito e os anos em que tinham sido fundadas me ajudariam a ser uma publicitária melhor. Andressa Lopes, publicitária. Eu já podia imaginar a placa com meu nome na porta da minha sala, dentro de uma agência bem famosa, com uma foto minha e uma lista dos prêmios que eu já havia conquistado.

Você não vai colocar a placa nova na sua porta, Andressa?

Eu perdi a fita adesiva, depois eu coloco.

Voltei para minha mesa e meu chefe passou lá na sequência para me dar parabéns. Ele tinha um pouco de medo de se aproximar, como se soubesse que dentro de algumas semanas ele seria demitido e eu ocuparia seu lugar. Segundo ele, tinha sido “uma apresentação de arrancar suspiros do cliente”. Acho que eu só não conseguia arrancar suspiros de mim mesma.

Obrigada. Quando é que a gente começa a produzir tudo isso? Agora?

Não, não se preocupe. Isso a gente vai passar pro estagiário.

Entendi.

Às vezes, eu queria voltar a ser estagiária. Ou veterinária, como Augusto, já que os animais não tinham aprendido a mentir. Cachorro que manca é porque está com a pata machucada, e fim de papo. Quando a pata sara, ele para de mancar.

A madrugada sem dormir tinha começado a atrapalhar meu raciocínio. Resolvi encostar a cabeça na cadeira e tentar não pensar em nada por alguns minutos. Talvez algumas horas. Na verdade penso que fiz aquilo para deixar crescer sonhos aqui nessa cabeça que todo mundo dizia ser criativa. Se eu sou criativa, que venham os sonhos, que venham muitos deles e que eles me façam sorrir de verdade.

Acordei poucos minutos depois e percebi que não tinha funcionado.

Abri o email com o próximo projeto. Prazo: duas semanas.

E uma vida inteira pra se viver.

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