Foto da Galeria de Imagem da Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian. Crédito: Estúdio Horácio Novais.

Quarta-feira

Fabricio Teixeira
5 min readNov 8, 2016

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Tem algumas perguntas para as quais eu dou uma resposta diferente para cada pessoa. Não porque eu goste de mentir, ou porque eu não tenha opinião formada sobre o assunto — mas apenas porque eu não considero a falta de opinião um pecado, como muita gente faz. É um dos males desse novo século: se as pessoas não têm opinião formada e muito clara sobre um assunto, o erro está nelas e não no assunto.

Mas eu lembrei disso porque, na semana passada, o André me perguntou para qual time eu torcia. Quando se nasce no Brasil, você tem que ter uma resposta rápida para essa pergunta — e sua resposta tem que vir acompanhada de algum complemento que demonstre sua paixão pelo time de futebol escolhido ou que rebaixe a inteligência da pessoa que perguntou caso ela torça para um time diferente do seu.

Pro São Paulo, é claro.

Dessa vez, eu respondi Santos. André me olhou com uma cara meio estranha, como quem não queria terminar na hora a amizade que acabara de começar e como quem ainda tinha um pouco de esperança de achar outros assuntos em que partilharíamos da mesma opinião. Tomou mais um gole do café, olhou em volta e mudou de assunto. Deve ter notado que aquela cafeteria não é uma daquelas onde se discute futebol, se é que existia alguma cafeteria onde se discutisse futebol naquela cidade. Para isso existiam os bares. E os estádios.

Sou corinthiano, mas não sou muito fanático, disse ele. Prefiro futebol europeu.

Chegando em casa, eu anotei essa pergunta na lista das perguntas-cujas-respostas-eram-variáveis, que fica no caderno vermelho que mantenho ao lado da cabeceira da cama, caso eu precise lembrar quem eu sou. Não que eu pense que um dia eu irei acordar e esquecer quem eu sou. O que seria engraçado, na verdade. Eu olharia para o lado e procuraria o caderno desesperadamente, e então perceberia que o caderno havia caído no vão entre a cama e o armário, e começaria a suar frio por ter medo de nunca mais lembrar as anotações que me faziam ser quem eu era. Não, não acho que isso vá acontecer. Mas é que hoje em dia são tantas as coisas que definem quem somos que para algumas delas eu preciso manter anotações. Por segurança mesmo.

Anotei a nova pergunta e reli algumas das outras. O que você vai fazer hoje à noite? Essa era uma das minhas favoritas. Porque geralmente quem a perguntava não estava genuinamente interessado em saber que fim teria aquela noite de quarta-feira, mas sim em me classificar em uma das gavetas onde se classificam pessoas de acordo com aquilo que elas fazem nas quartas-feiras à noite. “Pessoas que saem para beber”, “pessoas que ficam em casa lendo”, “pessoas que vão dormir cedo”, “pessoas que ficam na internet até de madrugada”.

Eu mesmo classifico meus amigos dessa forma. Pode-se descobrir muito sobre uma pessoa quando ela lhe revela o que faz na noite que marca a metade da semana. É naquela noite onde se separa mentalmente as promessas que não foram cumpridas daquelas que ainda não serão.

Da última vez que me perguntaram isso, eu respondi que ia fazer aulas de esgrima. Foi Cibele que perguntou, e eu senti que era mais uma daquelas perguntas das gavetas-onde-se-classificam-pessoas. Eu podia sentir seus dedos magros passeando pelas bordas do arquivo, gaveta por gaveta, uma em cima da outra, só esperando minha resposta para arquivar a minha ficha. Antes de guardá-la na gaveta, no entanto, Cibele pegaria o papel onde se escrevem as respostas-das-pessoas-previsíveis e faria uma ou duas anotações.

Daquelas anotações mentais que fazemos sobre as pessoas, mas morremos de medo de descobrirem e nos chamarem de preconceituosos.

Respondi que faria aulas de esgrima.

Escolhi essa resposta porque queria testar a amplitude de suas gavetas. No exato instante em que ela ouviu minha resposta, vi a mão de Cibele oscilar em volta do copo de cerveja, quase o movendo alguns centímetros para o lado. Em sua cabeça, naquela fração de segundo, Cibele suava frio ao lado do arquivo. Estava frustrada por não encontrar a gaveta da esgrima, apesar de procurar milhares de vezes em sua cabeça, em todas as gavetas de todos os arquivos, uma em seguida da outra. E ela se sentia insegura por não saber se deveria colocar minha ficha na gaveta das “pessoas que praticam esportes”, que ficava logo abaixo da gaveta das “pessoas que vão para a academia”. Porque na cabeça das pessoas comuns, a esgrima está mais para excentricidade do que para condicionamento físico.

Que diferente, ela disse, com um sorriso que refletia a luz da lâmpada amarela acima da nossa mesa. Nunca conheci ninguém que fizesse esgrima. Pronto, agora minha ficha já tinha sido colocada na gaveta das pessoas estranhas, ou na gaveta das pessoas excêntricas que fazem coisas inesperadas nas quartas-feiras à noite para fugir do óbvio, ou na gaveta das pessoas que treinam para ser serial killers.

Por um instante, eu fiquei com receio que ela fosse perguntar mais sobre as aulas de esgrima e eu fosse pego na minha própria mentira. Mas, como é esperado das pessoas que não têm um senso de ironia muito aguçado (ou, às vezes, de todas as outras pessoas), ela não perguntou. Deve ter acreditado.

Não me senti mal pela mentira, porque para mim não era uma mentira. Como disse, me permiti criar essa lista das perguntas-de-respostas-variáveis, e me assegurei de que nada disso se misturasse com a lista das perguntas-para-qual-sou-obrigado-a-mentir. As duas listas estão em capítulos separados do caderno vermelho. Em lados diferentes da cama: uma lista para lembrar quem eu sou, a outra para lembrar quem eu não sou.

Esgrima, que diferente, ela repetiu.

Senti um pouco de culpa, na verdade. Passou no instante seguinte.

Naquele dia, naquela quarta-feira de fim de verão, eu era um lutador de esgrima. Amador, ainda. Mas eu era um lutador de esgrima, e minha quarta-feira não terminaria em frente ao computador com cinco cigarros apagados ao lado do mouse. Naquela quarta-feira, eu estava treinando para a grande luta, que aconteceria no sábado e cujo inimigo era um perigoso vilão de seriados americanos. Naquela quarta-feira, eu torcia para o Santos, eu gostava de futebol e eu vestia uma daquelas máscaras perfuradas que só vestem os lutadores de esgrima e os apicultores.

Mas apicultor eu seria na quinta.

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