CRÔNICA

1188

Melany Pereira
Casa e Rua
Published in
3 min readMar 28, 2023

--

Casa 1188 | Foto: Melany Pereira

Branca com portões e janelas pintadas de azul. Logo abaixo do número 1188, temos uma lápide que traz sua data de fundação, 1957. Há mais de sessenta anos, aquela casa carrega uma grande história. Uma história de uma família, de uma grande família. Comprada por um casal de negros, que tiveram três filhos e diversos agregados, ali mais tarde se tornou uma casa de religião. O motivo? Saúde. Foi por questões de saúde que a matriarca daquela família foi em busca da fé, e nela que encontrou a esperança e a oportunidade de uma segunda chance. Nesse contexto, em 1957, no pitoresco bairro Jardim Botânico, que a vizinhança ouviu o sino tocar pela primeira vez. O gesto, que tem como intenção chamar as entidades para estarem presentes no local sagrado, era comum no dia a dia daquele ambiente.

Meu vô, Paulo, foi quem me ensinou a amar aquele lugar. Com ele, lá era alegria, era samba na certa, era acolhimento e conforto. Todo mês de agosto era festa, mês do Dia dos Pais e mês do seu aniversário. Crianças correndo para todo lado, cheiro de fumaça de churrasco, caixa de som no último volume, vozes e gritos e um entra e sai de filhos de santo chegando para abraçá-lo. Assim como sua mãe, a primeira mãe de santo da casa, ele era conhecido pela sua bondade e pelo seu coração enorme. Ele era o verdadeiro significado de casa cheia.

Entretanto, nem tudo são flores. A casa como ambiente familiar foi uma das primeiras da rua a ser levantada. Em seu início, tudo era mato. Com o passar dos anos, o Jardim Botânico se tornou um bairro de classe média (quase) alta. Seus novos habitantes não simpatizavam com o ritual religioso que ali existia, e muito menos com a família negra que ali morava. Não foram poucos os casos de opressão que a casa sofreu, eram ligações policiais para interromper as festas, pedras e gelos jogados no telhado, sem ao menos buscarem entender o que ali acontecia. Mas a casa resistiu. Na verdade ela segue resistindo.

Com o falecimento do meu avô, último herdeiro direto dos compradores daquele terreno, agora a casa se vê perdida. Por mais que já esteja habitada, e que a religiosidade que ali existe ainda se mantenha, muitas coisas mudaram. Agora, ela está anunciada em um site qualquer como à venda. A rua, por mais que ainda seja em sua maioria residencial, já vê um crescimento elevado de prédios e condomínios. De fato, muita coisa mudou, mas, ao mesmo tempo, ao chegar na Itaboraí e avistar seus portões azuis e suas paredes brancas, me sinto em casa. Talvez por lembrar de todas as histórias que ouvi falar que aconteceram ali. Talvez por ser o lugar em que brinquei com meus primos quando era pequena. Ou talvez por ser o lugar que me remeta ao meu vô. Uma casa que carrega uma história de mais de sessenta anos, localizada num bairro central e majoritariamente branco, só pode remeter a diversas coisas. Sejam boas ou ruins essas histórias, a casa 1188 se mantém de pé, a história daquela família negra vive. A religião de matriz africana que ali se estabelece resiste e sua história jamais será apagada.

--

--