PERFIL

61 anos e 21 casas

Marihá Maris Maria
Casa e Rua
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6 min readApr 4, 2023

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Silvane e recortes de sua história | Fotos: arquivo pessoal

Hoje, o apartamento 119 em um condomínio residencial próximo ao centro de Porto Alegre é o que Silvane chama de lar. Mas, para chegar nele, muitas malas foram feitas, desfeitas e algumas até deixadas pelo caminho. Ainda criança vivenciou a primeira mudança de residência, quando deixou Bom Retiro do Sul para ir morar em Taquari, onde sua família havia comprado uma casa. O divórcio de seus pais, no entanto, logo a fez retornar para a pequena cidade em que nasceu, acompanhada de sua mãe e três irmãos. Primeiro, moraram com sua avó, depois em uma casa afastada da cidade, até mudarem-se para a casa verde de madeira, número 518, ao lado da ponte que permite o trajeto sobre um arroio, onde ficou até seus 18 anos.

Morar na capital do estado sempre foi instigante para a mulher. Com os estudos de magistério concluídos, decidiu que não iria exercer o ensino e mudou-se para Porto Alegre em busca de estudar em um cursinho pré-vestibular e tentar a aprovação em uma universidade pública no curso de psicologia. Na cidade, morou provisoriamente com a sua tia Nina, até conseguir sustentar-se sozinha e dividir apartamento com uma amiga. A rotina de trabalho e estudos para o vestibular era cansativa e, no mesmo período, em sua cidade natal, a prefeitura abria um concurso para professores municipais, que poderia significar a sua chance de conquistar uma estabilidade financeira. Ela conta que havia deixado a cidade jurando nunca ser professora, mas retornou para cumprir o cargo em uma escola. “Eu cheguei em Porto Alegre uma menina com 18 anos, que não sabia pegar ônibus, e saí com 21 anos completamente independente”. Ao desistir do seu sonho na psicologia, ela afirma que se dedicou totalmente a outro sonho: que a educação fosse valorizada.

O retorno à casa verde, com sua mãe, foi conflituoso. Já acostumada com a sua independência, optou por ir em busca de um novo lugar para viver e evitar o desgaste emocional. Sozinha, alugou uma casa em frente à prefeitura da cidade e ali morou. Além de si mesma, ela também sustentava o seu irmão mais novo, Arno, que estava em outra cidade estudando. Para poder destinar mais dinheiro a ele e garantir que pudesse buscar por seu sonho profissional, ela decide renunciar parte de sua independência e volta a morar com sua mãe, dessa vez em uma casa de alvenaria na parte alta do município.

Desde o momento em que pisou no chão da cidade do interior, ao voltar da capital, ela adotou uma posição de resistência quanto à valorização de sua profissão. A jura de nunca trabalhar como professora não era somente por questão de gosto pessoal para o seu futuro, mas por saber as dificuldades que os profissionais enfrentam diariamente. Sindicalizada e militante do Partido dos Trabalhadores, a mulher fundou o partido na cidade e foi em busca de companheiros que adotassem a luta social e ao seu lado buscassem a valorização de sua classe.

Quando o seu irmão concluiu os estudos, ela pode voltar a se colocar como prioridade novamente. E assim, mais uma vez, deixa a casa de sua mãe. Na parte baixa da cidade, em uma casa próxima ao rio Taquari, ela conhece o seu primeiro marido: Ethson. Com 28 anos, ao lado dele, ela muda-se pela segunda vez para Porto Alegre, a fim de iniciar uma nova vida e uma nova família. “Eu queria transformar minha vida, tanto profissional, tanto como pessoa”, ela diz.

E é o que acontece no período de três anos e meio em que mora em um apartamento na Rua Lima e Silva, onde seguiu trabalhando como professora, iniciou o curso de Licenciatura em Geografia e engravidou do seu primeiro filho, Alexandre. Mas, propor o divórcio de seu marido foi inevitável, e, sabendo das dificuldades que enfrentaria para criar seu filho sozinha, ela retorna para Bom Retiro onde conta com o apoio da família e de amigos. “Quando voltei, voltei completamente diferente”, ela diz. “O que eu aprendi é o que eu sou hoje. Como mãe, estudante e profissional.”

Com seu filho de um ano, ela volta a morar provisoriamente com sua mãe, até conhecer Marcos e juntos irem morar na residência conhecida pelos membros da família como “a casa do morro da Igreja”.

Na casa, ela engravida de seu segundo filho, Caetano. Ao lado de seu marido e das duas crianças pequenas, realiza duas mudanças de casa, em busca de espaço para o conforto dos pequenos, até comprarem, no início dos anos 2000, uma casa azul, com um grande jardim. Ali, tem o seu terceiro filho, uma menina. Foi nesta casa que organizou a sua campanha eleitoral para vereadora da cidade, com o nome de Professora Silvane e com o número 13518, sendo os três últimos algarismos escolhidos por ser o número da casa verde, de madeira, próximo ao arroio em que morou com sua família e onde se descobriu como pessoa.

Nesta casa vivenciou também os seus dois filhos mais velhos conquistarem o que um dia foi o seu sonho: uma vaga na universidade federal em Porto Alegre. O local foi o lar da família por aproximadamente 17 anos, até a sua mãe enfrentar problemas de saúde e necessitar da presença da filha no seu dia a dia. Nesse momento, os dois filhos mais velhos já moravam sozinhos em Porto Alegre, devido aos estudos. Então os três membros da família que ainda estavam na casa mudam-se para perto da mãe de Silvane. Um ano depois, com as questões de saúde de sua mãe mais bem encaminhadas, a família, com a perspectiva de em breve mudar-se para Porto Alegre, aluga uma casa no centro da cidade. E ali, na casa branca e cinza de dois quartos, duas salas e uma grande cozinha, encerrou a sua história na cidade em que nasceu.

A mudança para Porto Alegre em março de 2020 parecia inevitável. Com seus dois filhos mais velhos morando na cidade e a mais nova a caminho dela, essa era uma decisão boa. É claro que morar na capital também não seria apenas uma opção boa para o seu coração de mãe, mas também para o seu financeiro, podendo mais tranquilamente arcar com as despesas de apenas um aluguel e proporcionar conforto para a vida universitária de sua caçula. Assim, agora aposentada, acompanhada de sua família, junto de um carro lotado e um caminhão de móveis, mudam-se para o apartamento 101 próximo ao centro da capital gaúcha. O local rapidamente ganhou o seu papel de lar, pois foi nele em que enfrentaram os meses mais difíceis da pandemia de Covid-19. Pequenos incômodos atrapalharam a permanência no lugar, e, por isso, em 2022, mudou-se de apartamento, mas no mesmo condomínio, apenas alguns metros de distância, deixando o prédio do último bloco e indo para o primeiro.

Não há caminhão de mudança capaz de transportar mais de sessenta anos de história por vinte e um locais. Na sala de estar do apartamento em que mora agora, poucos são os móveis e objetos que pertencem a ela há mais de 10 anos. No rack que sustenta a TV e que esteve na sala das últimas quatro casas, estão porta-retratos com registros de momentos dos últimos trinta anos de sua vida, o período em que teve seus três filhos. Ao lado, em uma estante, há um quadro, que ganhou de seu filho Caetano na semana em que se mudou pela terceira vez para Porto Alegre, com os dizeres: “Fui ser feliz e não volto”. Quando recebeu o presente, ela conta, não soube como conter as lágrimas, porque a frase retrata seu intuito e seus sentimentos em mais uma vez iniciar uma nova etapa de vida nessa cidade.

As idas e vindas para a cidade representaram mudanças em sua vida, marcando o início de novas etapas profissionais e pessoais, independentemente do sucesso de suas escolhas. Ela fala que, “se colocar na balança, teve mais ganhos que perdas”. Mas ela sabe que ainda não chegou ao fim. Com força nas palavras, de forma enfática, diz: “não tenho raízes, vou mudar”, sobre a possibilidade de ainda realizar mais alguma mudança de casa e cidade.

Vinte e uma casas e vinte e duas mudanças: esse foi o número total de trajetos que guia a sua vida. O número, para ela, foi uma surpresa e também uma decepção. Ao externalizar as motivações de suas mudanças, uma grande maioria partiu do princípio de buscar uma alternativa financeira mais agradável ou fornecer mais conforto para outra pessoa, e não ela.

O que fica claro é que, com uma trajetória marcada por mudanças influenciadas pelas vivências a partes, o próximo passo partirá dela mesma e para onde ela se imagina aproveitando uma vida com sua independência como prioridade, o que sempre foi seu maior objetivo, desde quando deixou a casa verde 43 anos atrás. Mas o que sei e digo com propriedade por ser a sua filha mais nova e a ter acompanhado em 4 de suas mudanças é que, independente de onde ela esteja, a sua casa sempre será um lar, com toda a subjetividade que a palavra possui.

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