PERFIL

A casa de Cícero ainda é nas ruas

Gabriela Sardi
Casa e Rua
Published in
8 min readApr 4, 2023

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“Se eu quiser usar eu uso. E ninguém vai me impedir. Pode descer Jesus Cristo aqui e me segurar, que eu dou crack até para ele”. Durante mais de 15 anos, não havia quem conseguisse dissuadir Cícero da ideia de fumar mais uma pedra — ou emborcar mais um gole de cachaça. Era o jeito de tornar mais digesta a vida sobre o papelão na calçada (ou sobre os beliches dos abrigos). Em 20 anos de rua, boa parte dos 49 de idade que reúne hoje, Cícero ouviu ronco de estômago, ameaça, sirene de polícia; sentiu gosto de sangue, de bebida, de secura; fez amizade, juramento e trapaça; conheceu o debaixo da ponte, o entre arbustos e sobre os bancos; não matou mas enterrou, ficou preso mas não teve sentença, ficou doente e não morreu. E agora se apresenta como ex: “ex-dependente químico, ex-alcoólatra, ex-morador de rua”.

Criado na Vila Cruzeiro, zona sul de Porto Alegre, ele nasceu Cícero Adão Gomes de Almeida. Da breve relação entre sua mãe e seu pai é filho único. Mas meio irmãos tem dez, entre os por parte de mãe e os por parte de pai. Fora de casa colecionou outras companhias e, entre muitos amigos e namoradas, conheceu a cocaína, aos 15 anos. Formou a tríade pó, bebida e baseado, presente das saídas depois das aulas à noite aos pagodes que se estendiam de quarta a domingo. A cocaína o deixava atento (“cai um alfinete no chão tu tá esperto”), sem fome ou cansaço. É a droga que “dá mais longevidade da canseira”, diz ele.

Começou a passar algumas noites fora do teto dos pais, já que para brisar só na rua, e “a porta era serventia da casa”. Quando ele sabia, por algum conhecido, da saudade que a mãe sentia, resolvia voltar. “Mas saudade era três dias só, daí eu já chineleava em casa e me mandavam embora. É assim com vários da rua. Eu era a bola da vez da família. Tinha 30 errado, mas o mais errado ali era eu”.

Entre idas e vindas, aos 17 anos fixou morada. Dessa vez na Polícia do Exército, na Rua dos Andradas, onde era soldado cozinheiro. Saiu de lá para não ser expulso. “Eu usava droga ainda, não respeitava ninguém. E piorou”. Durante a Copa do Mundo de 98, não mais no Exército, se aproximou de um amigo que esbanjava: trajava Lacoste e andava de carro do ano. Cícero encheu os olhos e perguntou como poderia ter aquilo para si. Descobriu que tinha de traficar. Ok, era o preço. Começou a vender cocaína e, a partir dela, produzir crack — que só vendia, não fumava. Passado algum tempo, roubou um pacotão de droga e, por conta disso, saiu de Porto Alegre e foi morar no litoral norte do estado, em Cidreira. Arranjou um trabalho no caminhão do lixo. Não vendia mais crack: dessa vez passou a comprar. “Acabou a minha vida. Terminou com tudo. Eu comecei a me meter mais em confusão ainda e tive que ir embora da praia”.

De volta à capital, se estabeleceu na Vila dos Papeleiros, o “antro da droga, cracolândia de Porto Alegre”. Lá Cícero tinha tudo: “eu tinha a minha droga, tinha como conseguir dinheiro para comprar a droga e tinha o bandejão”. Bandejão era o restaurante popular que ficava próximo à rodoviária. As refeições eram pagas, mas saíam de graça para quem escutasse a palestra sobre uso de entorpecentes que acontecia no segundo andar do prédio. Barriga cheia, Cícero usava os trocados que economizara do almoço para comprar outra pedra, garrafa ou baseado. E assim se passaram quatro anos.

Por volta de 2012 começou a se envolver com a militância. Entrou para a equipe do jornal Boca de Rua, único no mundo elaborado por pessoas com trajetória de rua, e para o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Também ingressou na “E se essa rua fosse minha”, iniciativa de 2014 da Secretaria Municipal da Saúde que intencionava diagnosticar e tratar a tuberculose em pessoas em situação de rua. Cícero era um dos responsáveis por mediar o contato entre enfermeiros e médicos e as pessoas em vulnerabilidade. Foi aí que descobriu que ele próprio tinha tuberculose, a “porta para o resto das doenças”. “É tuberculose, hepatite e HIV. Dessas três tu tem duas. Ou as três. Uma só é difícil tu ter. E sífilis também, agora tá bem avançada. Eu também tive sífilis”.

Ao todo, Cícero participava de dez projetos. “Só que a droga e o álcool me privavam de dormir, eu só cochilava. Chegava com sono nos projetos. Se eu fumasse uma pedra ou tomasse um gole de cachaça já não ia”. Certa vez, foi com Edison “Beiço”, um de seus grandes amigos da rua, a Curitiba, para participar de uma capacitação do MNPR. Sem documento, viajaram com identificação emitida pela Polícia Civil e passagem cedida pela assistência social do município. “Fomos com seis garrafas de cachaça dentro da mochila. Ele com três e eu com três — e bebendo uma na mão. No ônibus voou cachaça pra tudo quanto é lado, nós só incomodava”.

“Perto da rodoviária de Curitiba tem um viaduto, e atrás, indo reto, tem uma vila. Eu não sabia. Mas eu tava ali, louco pra usar um crack, eu não usei por três dias. E o Beiço olhou pra mim [e disse]: ‘ba, negão, ainda bem que já tá vindo o ônibus, assim não dá tempo de tu fumar. Tô sentindo que tu tá louco pra usar droga. Eu digo ‘ah, eu tô mesmo. Se tu piscar eu vou usar, eu tenho dinheiro’”. O dinheiro em questão era fruto da capacitação promovida pelo MNPR, 1500 reais no total. Calhou que um homem passou por Cícero e Beiço oferecendo crack, e Cícero se juntou a ele. Lá se foi o ônibus — e boa parte do dinheiro.

No dia seguinte, Cícero descobriu que Beiço ainda o aguardava na rodoviária. Para arranjar uma nova passagem de volta a Porto Alegre, falaram com o brigadiano que quebrava um galho no departamento de assistência social da rodoviária. A dupla argumentou: “se nós vamos ficar, nós vamos roubar, nós vamos fazer um bolo aqui. Seria melhor tu ter menos ladrão aqui e mandar nós pra Porto Alegre”. Convenceram. “Daí esperamos nove horas para pegar o próximo ônibus. Ainda bem que a gente tinha bastante cachaça. E ainda pedia dinheiro lá para tomar mais”.

Um outro capítulo

Na terceira vez em que contraiu tuberculose, Cícero conseguiu estadia no antigo Abrigo Bom Jesus. Chegou lá com 39 quilos e sem alguns dentes. “Estava tão fraco que não podia nem roubar mais, que não conseguia correr da polícia. E apanhava que nem louco”. Permaneceu no abrigo por 14 dias. No décimo quinto, ao checar seu extrato bancário para conferir o recebimento do Bolsa Família, descobriu mais de três mil reais na conta, oriundos dos auxílios que recebia por suas participações nos projetos. “Daí me esqueci do abrigo e fiquei três dias dentro da vila”. Quando Cícero retornou ao abrigo estava desligado. Não dava para faltar sem avisar — normas da instituição. Mas as assistentes sociais o ajudaram: contataram uma promotora pública que exigiu que o município arranjasse morada para ele. Para tanto e para permanecer em seus projetos, a condição: frequentar um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) voltado a dependentes químicos.

Mesmo com o revirar de olhos, Cícero aceitou. Os dias passaram a ser no CAPS Partenon. As noites, no Abrigo Municipal Marlene. Foi assim por dois anos. “Só que eu recaía toda hora na droga. Eu dava três passos pra frente e 15 pra trás. Nunca conseguia me firmar”. Foi só quando entrou em uma comunidade terapêutica para dependentes químicos, a Fazenda do Senhor Jesus, em Viamão, que parou definitivamente de usar crack e outras drogas. Lá, o tratamento acontecia na base do sofrimento, conta Cícero. E para ele esse é o único jeito. “Não pode ser no amor. Todos que tentaram com amor comigo, nenhum teve sucesso”.

A comunidade terapêutica tinha regras de conduta que tinham de ser seguidas à risca — e punições eram previstas para quem não as cumprisse. A pedagogia era peculiar, por assim dizer: “uma vez eles mandaram eu cavar buracos, um por um, tocavam uma bagana de cigarro e mandavam eu fechar. Mandaram eu enterrar uma vaca sozinho, fazer um buraco do tamanho disso aqui, ó. Também mandavam eu regar a horta na chuva. De nove meses, acho que cinco eu não sabia o que era domingo, trabalhava de segunda a segunda. Porque eu sempre era punido”.

Hoje em dia Cícero não fuma e não bebe (“lá em casa não tem álcool. Só pra passar na mão”), mas a recaída é sempre iminente. Ele concluiu que a droga é espiritual: “tu tem que tá possuído por alguma coisa pra tomar cachaça num sol de 40 graus, tu não pode tá bem”. Para manter são o espírito, limpar a podridão que tem por dentro, ele usa a fala. Fala tudo e fala alto. Não há discrição nem ligação fora do viva voz. Os braços acompanham seu discurso, em movimentos erráticos e seguros ao mesmo tempo. Cícero não hesita, não pára, não põe seus pensamentos em xeque. Só muda o assunto para cumprimentar algum conhecido — o que acontece com uma frequência impressionante. A impressão é de que, se ele percorresse Porto Alegre de um extremo a outro, pararia a cada dois quilômetros para soltar “e aí, meu querido! Como é que tá, mano véio!” a uma das milhares de pessoas que diz conhecer.

Depois disso voltaria a seu apartamento, com dois quartos, sala, banheiro e cozinha. Tevê, mesa de centro e ar-condicionado. Também beijaria sua esposa, Jennifer, assistente social que conheceu durante a breve passagem pelo Abrigo Bom Jesus e que reencontrou depois de muitos anos.

De início, ninguém, com exceção de Jennifer, acreditava que a relação funcionaria. “Não dá, tu é uma assistente social, eu sou um ex-morador de rua, tu já viu dar certo a dama e o vagabundo?” — e deu, no fim das contas. Entre idas e vindas, no início da pandemia de Covid-19 Cícero saiu da república em que morava e se mudou para o apartamento de Jennifer. Um ano depois, os dois trocaram alianças.

Ficar junto

Volta e meia Cícero reencontra pessoas que o ajudaram na época de rua. Como a dona do restaurante próximo ao Parque Harmonia, que fazia seu balde virar prato ao ofertá-lo comida; ou a senhora do armazém do início da Riachuelo, que não deixava faltar, a Cícero, pão e café. Com os antigos companheiros de rua, todavia, não há reencontro — já que nunca houve separação. “Meu dever é continuar com eles. Eu aprendi muito com esses caras. Eles foram a família que me abraçou”.

Junto a sua família, Cícero faz churrasco e roda de samba. Nos dias úteis, além de trabalhar como cozinheiro na Band TV, também organiza as reuniões do Coletivo Pop Rua RS, fundado por ele em 2022. Na mochila vermelha carrega uma papelada que nunca sai de lá (“não pode, tudo eu preciso”); são processos, notícias, folhetos, fotos. Para Cícero, um relicário do passado e do presente de sua luta junto à população em situação de rua. As batalhas são muitas, mas Cícero, traçando paralelo com Marielle, diz saber de todas as falcatruas da cidade. “Qualquer dia posso aparecer morto. Porque eu tenho tudo contra a Prefeitura. Só que hoje o prefeito pra mim é café pequeno”, orgulha-se.

Respira fundo. “Eu só te peço uma coisa, e não é em troca, é pra ti mesma: não larga nós de mão”. Lembro de seu firme cumprimento, quando do nosso primeiro contato.

Pode deixar, não largo.

Cícero em frente ao albergue do Instituto Espírita Dias da Cruz, uma de suas várias moradias durante os anos de rua | Foto: Gabriela Sardi

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