CRÔNICA

A cerca

Carolina Dill
Casa e Rua
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3 min readApr 4, 2023

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Era uma típica tarde de verão em Porto Alegre. O calor refletia do asfalto, dos muros de concreto grafitados, das paredes das casa de alvenaria e nos comentários dos vizinhos da Vila Planetário. As piscinas de plástico de mil litros serviam de refresco e diversão para mais um dia de férias da criançada. A rua se fazia pátio compartilhado entre as casas do conjunto habitacional, dando espaço para as brincadeiras entre os cachorros, para as cadeiras de praia e para os bate-papos do cotidiano. Entre um fragmento de conversa e outro, um vizinho passa de bicicleta pela Rua Luiz Manoel e para na frente de um grupo de moradoras:

- Tão falando que querem fazer uma cerca aqui no entorno da Vila, vocês viram? — comenta o vizinho.

Uma das mulheres sentada avisa que ele tá falando bobagem, que não acredita como isso poderia acontecer.

- Tu tá falando besteira.

Ela não confia no poder público. Nesse meio minuto, a conversa mais alta foi o suficiente para reunir outros moradores em torno do redondo de concreto que centraliza. Vizinhos batiam na casa de outros vizinhos chamando para conversar sobre a cerca. Murmurinhos e uma opinião em cima da outra ocultou o som dos latidos dos cachorros.

Enquanto parte defendia que o cercamento seria uma forma de conter a insegurança e a passagem do tráfico de drogas, outros não enxergam a viabilidade disso acontecer, diante de aspectos estruturais e dos meios de acesso ao local. Há também outro grupo que não acredita no cercamento como solução para os problemas da comunidade. A própria Rua Luiz Manoel tem em seu nome a figura de um comandante da guarda municipal, mas o acesso da segurança pública tem limite no território, ficando a cargo de organizações da sociedade civil procurar alternativas para mudar essa realidade. Para estes, a construção da barreira física deveria ser substituída pela melhora da iluminação noturna, já que a visualização das ruas à noite acaba ficando a cargo da luz emitida de dentro das casas. Além disso, defendem a melhoria das calçadas, da fiscalização do espaço, contribuindo para que ele seja visto como um ambiente organizado.

Em meio a debates sobre uma possível privatização e cercamento da Redenção, a informação sobre a Vila Planetário, no entanto, surgiu de um boato de dentro da comunidade com cerca de 100 famílias. O tal vizinho que abriu a discussão utilizou como referência o condomínio de moradias populares Princesa Isabel, apelidado como Carandiru, para engajar a sua ideia. O apelido do local em si já carrega um estigma, em referência à Casa de Detenção de São Paulo, demolida em 2002.

O território da Vila Planetário, em especial a Rua Luiz Manoel, é espaço de passagem de catadores, papeleiros e pessoas em situação de rua, que não necessariamente vivem na região. Também, é ponto de encontro de manifestações culturais e artísticas, em sua maioria blocos de carnaval, fanfarras e rodas de samba. O cercamento de uma comunidade vulnerabilizada acaba invertendo a lógica do que significa um espaço público. O local acaba se disntanciando ainda mais da região em que está inserido. Mais do que isso, também contribui para afastar a responsabilidade do gestor público em garantir os direitos do território. Apesar da não concretude da informação compartilhada, a discussão provocou reflexões entre os vizinhos. Provocou movimentação e discussão sobre seus direitos. Seja sobre a cerca ou sobre o que for, o debate contribui para derrubar os muros das próprias divergências em comunidade.

Foto: Carolina Dill

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