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A diferença entre âncora e raiz: conheça Ires Leão, uma das guardiãs da história do município de Guaíba

Sophia Maia
Casa e Rua
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7 min readApr 3, 2023

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Ires no cômodo principal da Casa de Gomes Jardim | Imagem: Sophia Maia

Uma casa de duzentos e cinquenta anos e uma senhora de oitenta e um. A casa tem paredes de pedras irregulares e assentamento em barro. O chão é de dois tipos: parte em madeira e parte em cerâmica. Do outro lado da rua, uma árvore e um túmulo — a vida e a morte. A árvore é mais velha do que a senhora e teria sido às suas sombras que a Guerra dos Farrapos foi planejada. O túmulo pertence a José Gomes de Vasconcellos Jardim, um dos presidentes da República Rio-grandense.

Ires Beti Ericksson Leão é uma contadora de histórias. Para ela, olhar para o passado é a única maneira de compreender o presente. Por isso, é ela quem guia os curiosos pela casa bicentenária que se estabelece no sítio histórico de Guaíba. É também essa senhora que me recebe neste mesmo ambiente e, disposta, me fala que antes de falarmos sobre ela, é preciso entender como essa casa, que tanto regeu a sua vida, virou posse da família.

Casa de Gomes Jardim e Cipreste | Imagem: Sophia Maia

Guaíba — Berço da Revolução Farroupilha

O local que hoje é apresentado por Ires foi construído no século 18 por Antonio Ferreira Leitão. Depois passou a pertencer a sua filha mais nova, Isabel Leonor Ferreira Leitão, que foi a esposa de Gomes Jardim — importante figura da Revolução Farroupilha e o presidente da República Rio-Grandense de 1841 a 1845.

Busto de Gomes Jardim no Sítio Histórico de Guaíba | Imagem: Sophia Maia

Gastão Leão, sogro de Ires, era um médico recém-formado em 1923. Enquanto isso a Estância das Pedras Brancas, considerada o 7º distrito pertencente a Porto Alegre, sofria justamente pela falta de um médico que atendesse sua (ainda que pequena) população. O pai de Gastão, Pedro José de Leão, era servidor do Arquivo Público de Porto Alegre e, como tal, tinha conhecimento acerca da individualidade da casa que pertenceu à família de Gomes Jardim quando comparada às outras. Sabia de seu valor como parte da história do Estado e decidiu comprá-la, vindo junto de seu filho morar no local que hoje é o sítio histórico de Guaíba.

Gastão Leão cria seus dois filhos na casa, sempre valorizando a preservação da tradição gaudéria com sua família: “Eles são criados dentro de um campo de conhecimento histórico diferenciado. Porque aqui, todos os anos, na data de 20 de setembro, o Doutor Gastão pegava seus dois filhos e a esposa e iam para frente da lápide de Gomes Jardim […] e cantavam o hino do Rio Grande do Sul em uma época em que não se fazia tanto este tipo de movimento”.

Amor à moda antiga

Um dos filhos de Gastão Leão cresceu e logo cruzou pelo caminho de Ires. O rapaz que tomou seu coração se chama Gaston, e os dois se conheceram à moda antiga: o colégio de Ires ficava no caminho que Gaston fazia para pegar o barco e ir para Porto Alegre estudar. “Ele passava pelo colégio na hora do recreio para dar uma bisbilhotada nas gurias”, conta Ires. Os namoros tinham uma dinâmica diferente, mais formal, mas isso não foi um impedimento aos apaixonados. O romance deu tão certo que em 2022 o casal completou 60 anos de casamento. Fruto desse amor nasceram cinco filhos, sete netos e um bisneto. Os primeiros 25 anos da família de Ires e Gaston foram sediados pela casa que atravessava agora mais uma geração — e que também não perdeu o apego pelos costumes culturais: “todos na família ficaram com este sentimento de proteção à história de uma época impregnados em si”, diz a senhora.

Sobre a criação dos filhos, Ires conta que sempre baseou a relação com as crianças em na liberdade: “Então eu determinava, por exemplo, essa parede aqui eu não vou botar móveis porque vocês podem desenhar nela o tempo todo, e assim foi que eles fizeram. Desde sempre foi assim e eles aprenderam que têm as liberdades deles, mas eles não podem ultrapassar a liberdade dos outros”.

Sangue não é água

Um desses filhos se aproximou ainda mais da história enquanto campo de estudo: Miriam Leão. Historiadora e artista, é conhecida na cidade justamente pelo seu esforço no reconhecimento e na documentação do patrimônio histórico e cultural. Sua filha mais nova, Mariana, também já é formada em história.

A preocupação de Pedro Leão, que motivou a compra da casa, permaneceu sempre viva entre os familiares. Em 1993 a família entrou com um pedido de tombamento na da casa que foi a morada de Gomes Jardim, tornando-se a primeira família no estado a tombar um local de sua própria posse. “Assim nós tivemos uma segurança de que a casa não passaria para mãos descuidadas e que fosse se perder toda essa história”, Ires acrescenta, orgulhosa.

Solicitação do tombamento da Casa de Gomes Jardim | Foto: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado

Mas a casa não se tornou um local de visitação logo após ser tombada. Ela ainda serviu por vários anos como moradia para alguns membros da família. Com o tempo, no entanto, foi se tornando pequena. Além disso, as exigências legais impediam qualquer tipo de melhoria no lugar, o que acabou por afastar os moradores. A casa ficou vazia.

Síndrome do ninho vazio

Ires foi mãe cinco vezes, criou todos os seus filhos e ajudou com alguns netos. A casa de Gomes Jardim presenciou a vida e a morte de figuras históricas para o Rio Grande do Sul, mas, além disso, viu uma família crescer e se dissipar. Não de uma maneira negativa, apenas da maneira pela qual a maioria das pessoas se desenvolve: nasce, aprende, encontra seu caminho e forma sua própria matilha. A casa de Ires, aos poucos, também foi tendo cada vez menos crianças por criar. Duas casas com diferentes tipos de solidão.

Gaston, seu marido, começou a buscar alternativas para trazer movimento ao local. Consideraram alugar para a iniciativa privada, mas tinham medo de que a história se perdesse, como seu avô sinalizava que poderia ocorrer. Somando dois problemas, Ires encontrou zero como resultado: encheria a casa de Gomes Jardim de quem quisesse visitar e voltaria a ocupar seus dias.

Ires se orgulha de sempre ter sido uma companheira de seu marido. Satisfeita, comenta que esteve ao seu lado não apenas no lugar de tranquilidade do lar, mas que embarcava junto nas empreitadas de Gaston. Quando propôs ser a guia das visitações na casa, chegou a ser questionada se teria a expertise para contar a história sem ter uma formação. À indagação, respondeu: “eu vou atender com o meu coração. Com o que eu sei, com o que eu li e com o meu sentimento em relação a essas coisas”.

Desde então, ela conduz uma dinâmica de visitação diferente. Antes de começar a apresentar a casa, tira um tempo para observar o grupo e estabelecer conexões com eles. Se são de outros países, ela quer saber de onde vêm para relacionar a história deles à do Estado. Se são crianças, faz questão de tratar eles de forma que se sintam especiais. Se é um arquiteto, ressalta que a casa tem 250 anos! Relembra que uma vez recebeu um visitante com deficiência visual e tirou os instrumentos médicos antigos que mantém em um armário para que ele pudesse sentir com suas mãos. Contente, completa que, ao finalizar a apresentação, esse mesmo visitante foi o primeiro a lhe aplaudir.

Ires no cômodo principal da Casa de Gomes Jardim | Imagem: Sophia Maia

A menina que, quando jovem, virava as noites na companhia dos livros, hoje é quem conta uma história que também ajudou a escrever. Ires é a matriarca da família que foi responsável por amadurecer a visão dos cidadãos guaibenses acerca do passado da própria cidade. Ela sempre esteve presente em todos esses movimentos. Seja enquanto acompanhava o marido nos Centro Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) e oferecia uma comida quentinha aos visitantes na Semana Farroupilha, ou quando incentivava a própria filha a seguir seus estudos no campo da história e perpetuar o sobrenome dos Leão enquanto guardiões desse passado.

Cem anos depois da chegada do seu sogro à cidade, Ires se orgulha do que a família pôde construir até aqui. Se a preocupação de Pedro Leão era que a casa virasse só mais um prédio velho entre tantos outros, ele pode descansar em paz. Ainda sobre preservar as origens, Ires finaliza dizendo: “O Mário Sérgio Cortella disse uma coisa tão bonita esses dias, ele disse que existe uma diferença entre âncora e raiz. A âncora te paralisa. A raiz te alimenta. Nós não podemos ficar ancorados. Nós temos que criar raízes que alimentam a nossa inteligência, o nosso amor e o nosso sentimento de pertencimento”. A história de Ires também é sobre isso. Há uma raiz na frente da casa que alimenta um cipreste. Mas há também uma raiz dentro da casa — composta por seis gerações de uma família que lutou (e ainda luta) para preservar uma parte da história do Rio Grande do Sul.

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