CRÔNICA

A DIREÇÃO DO OLHAR

Laíse Jergensen
Casa e Rua
Published in
3 min readMar 28, 2023

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Hoje, mais uma vez, fizeram-me a fatídica pergunta: “de onde tu é?”. Pro interlocutor nunca fica claro o motivo da minha confusão com a questão e até certo desvio, mas ela requer de mim um tanto de reflexão e autoanálise. Penso se o que querem saber é onde nasci, onde morei por mais tempo, onde minha família mora, de onde tenho mais referências culturais ou onde morei antes de vir para Porto Alegre — a resposta nunca é a mesma.

Fato é que vim parar em Porto Alegre. Foram longos anos, desde a infância, planejando estudar aqui, estar aqui e ser daqui. Quando cheguei na cidade, circulava por bairros centrais arborizados, que me causavam uma sensação de segurança e de costume. Rapidamente fui descobrindo verdades sobre Porto Alegre. O racismo, a violência, a fome, a falta de casa. No início parava sempre que me pediam ajuda e frequentemente comprava algo no mercado pra entregar a alguém que me esperava na rua. Era impossível passar reto pelo outro.

Prontos para a cidade, os porto-alegrenses natos sempre julgavam a esmola. Eu sempre expliquei: no interior ninguém mora na rua. Nas cidades em que eu morei, observei distintas mazelas sociais, que nunca foram falta de casa. Eu não compreendia a apatia. Aos poucos fui enxergando os riscos de entregar alguns pouquinhos do meu dinheiro: quando tentaram pegar minha mochila na rodoviária e quando arrancaram algumas notas da minha mão em um bar da Cidade Baixa. Acho que fui me tornando porto-alegrense também.

Após um ano morando na capital, comecei a trabalhar no Centro, em meio à pandemia de Covid. Eu sentia como se o Centro fosse uma concentração de tudo que Porto Alegre é. A beleza, a arquitetura a cultura. A droga, a loucura, a sujeira. Tudo junto, num misto de pessoas correndo e gritando. Eu sempre transitava pela Praça da Alfândega surpreendida com a quantidade de acontecimentos que eu presenciava a cada passagem por aquele lugar. Era um trajeto diário, em uma mistura de medo com contemplação. As árvores contornavam os prédios históricos, enquanto algum aposentado, com calma, ficava sentado em um dos vários bancos verdes de madeira e concreto, observando alguém em uma discussão calorosa logo a frente.

Foi em uma manhã dessas, em que eu era empurrada pela correria no retorno pra minha casa, que ouvi os seguintes gritos: “eu tô com sede, por que ninguém me olha? Alguém, por favor, olha pra mim”. Àquela altura, eu mesma já não olhava.

Eu cheguei em casa naquele dia e precisava chorar. Sentada na única cadeira do apartamento em que eu morava, fiquei desabando por um tempo e tentando entender como me sentir em casa em um lugar com tanta dor. Eu sabia que vir para Porto Alegre era enfrentar a vida, mas foi aqui que percebi o tanto que ela poderia ser ingrata.

Quando eu era bem pequena e visitava a cidade, lembro apenas de ver as palmeiras da Oswaldo Aranha, de ir à banca onde eu sempre comprava revistas e de ficar cantarolando a música da Isabela fogaça, trilha da propaganda do Zaffari. Pra mim, isso era Porto Alegre. Hoje, quando perguntam de onde eu sou, facilmente respondo que sou daqui, e a imagem que formo da cidade passou a ser a minha casa, com as paredes brancas, o barulho dos vizinhos e a vista pro mercadinho que sempre frequento.

Durante toda a minha vida eu quis pertencer. Não ser estranha no lugar que eu morava, ter meu sotaque em consonância com quem eu conversava. Sempre quis saber responder de onde eu sou e, com o tempo, fui me acostumando com a ideia de ser de lugar nenhum e de responder apenas “é complicado”. Porto Alegre hoje é casa. E é ambiguidade. É essa mistura entre tanta coisa boa e tanta coisa ruim. É um monte de coisa e um monte de falta. É o costume, forçado, de não olhar para o que acontece na própria casa.

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