CRÔNICA

A equação do casarão

Valentina Bressan
Casa e Rua
Published in
4 min readMar 28, 2023

--

foto: arquivo pessoal

Quando entro no casarão pela primeira vez, tenho 129 anos a menos que o velho prédio. Nessa época, sou boa com números e estou tentando me entender com as palavras. Quero passar no concurso para estudar ali, quero que a Redenção deixe de ser apenas passeio de família de domingo, quero novos endereços. Meu nome aparece na lista, e a José Bonifácio 363 passa a ser o destino da minha jornada diária.

São quase vinte quilômetros da minha casa ao “Casarão”. Aprendo rápido que o apelido oficial — porque aqui, até apelidos tem toques burocráticos — é usado só pelos adultos. Nenhum daqueles que vêm a se tornar meus amigos chamam o prédio amarelo assim. Todos os dias usamos um uniforme esquisito e se esquecermos de colocar cinto são menos 0,30 pontos na média de comportamento. Diferentes motivos nos levam a aceitar as regras arbitrárias de séculos passados: alguns foram obrigados pelos pais muito cedo e ficaram para se formar; outros, como eu, achavam que era uma boa ideia sofrer um tanto estudando no ensino médio para que não precisar fazer cursinho pré-vestibular.

De todos os dias que passo ali, os mais especiais pouco tem a ver com o casarão. A rua nos interessa muito mais. Em dias de sorte, dá até para correr na pista da Redenção na aula de educação física, quando ficamos na turma da professora simpática. Nas aulas que, às vezes, aconteciam aos sábados, éramos rápidos em esquecer as horas intermináveis nas classes assim que colocávamos o pé para fora e comprávamos um abacaxi no palito geladinho por 3 reais. Na rua, não é preciso contar a cadência dos passos, “esquerda, esquerda, direita, esquerda”. A rua é menos dura ao nos vigiar.

São os amigos que faço nesse colégio esquisito que me apresentam a Porto Alegre que aprendo a amar. Da igreja na esquina, passando pela padaria, o restaurante, o antiquário e os apartamentos à venda, enumero as caminhadas, passamos mais de uma centena de vezes pela José Bonifácio. Às vezes nosso destino é a João Pessoa, onde compramos um salgado numa padaria que não parece se importar muito com regras sanitárias, economizando o dinheiro do almoço para coisas mais preciosas. Em alguns dias, compramos alguma quinquilharia na papelaria. Em outros, compramos mais minutos juntos indo na sorveteria da casa verde, quase na Osvaldo Aranha.

Dentro do casarão, estamos no terceiro ano do ensino médio agora e nos revoltamos com os números. Somos adolescentes, afinal, apesar dos hábitos estranhos daquela escola, e temos todo o direito de reclamar. Mesmo anos depois, sigo acreditando fielmente nos nossos motivos para tal: as regras são arbitrárias e, como no mundo lá fora, são aplicadas de forma injusta e desigual. Lembro, ainda hoje, do dia em que um dos nossos monitores, indignado com nossas reclamações, disse: “Quem não gosta daqui, é só pedir para sair. Vocês precisam aprender que, na vida, é preciso passar 95% do nosso tempo fazendo coisas que não gostamos, para ter só 5% do que a gente gosta”, diz. Ouço: a porta da rua é serventia da casa. Ecoa: Brasil, ame-o ou deixe-o. Multiplicam-se péssimos significados de uma matemática nociva.

Ficamos das 7:15 às 12:40 na escola, são aproximadamente 22,5% de nossos dias dentro do Casarão. Contamos os dias para sair dali, mas sem pressa de enumerar os dias que passamos juntos. Somos bons de matemática, afinal. Fazemos o máximo para entortar os limites da estatística, construir novas geometrias que nos interessam mais.

A sorveteria da casa verde fechou — provavelmente não dava para fechar as contas. Hoje, marco o ponto de coordenadas -30.038, -51.213 no mapa virtual do Uber quando quero ir à Redenção ver meus amigos; atravessamos as ruas em horários mais tardios do que a sineta de início das aulas, com roupas centímetros significativos mais curtas do que os uniformes, indo em direção a algum lugar da Cidade Baixa que tenha sido escolhido para a noite.

Ainda percorro muitos quilômetros todos os dias, mas com destino a outros lugares. Se me perguntam onde estudei, respondo. Quase dá para ver as dúvidas do interlocutor se multiplicando por trás dos olhos. Que números será que apertei na urna? O que acho da militarização das escolas? Foi a UFRGS que me deixou dessa forma ou eu já era assim? É uma adivinhação injusta. Mas tanto faz. Já não importa a exatidão dos números, não precisamos mais dividir nosso tempo com o casarão amarelo, que na verdade, de lar, sempre teve pouco. Estou, ainda, tentando me haver com as palavras. Escrevemos histórias de novos lares, novos endereços. Guardamos a semântica da amizade, no fim, única equação que importa resolver.

--

--