PERFIL

A mãe da minha mãe

Paulo Henrique Chalmes
Casa e Rua
Published in
7 min readApr 6, 2023

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Perfilada Maria Eva | Foto: Arquivo Pessoal

Maria Eva Silveira de Brito, viúva duas vezes e mãe de dez crianças, as quais educou e criou sozinha com o pulso firme e o coração doce de uma emancipada brasileira, como diriam à época. Pariu duas mulheres e oito homens. Mais tarde, perderia dois desses filhos e uma das mulheres se tornaria minha mãe. Dona Maria, maneira pela qual foi carinhosamente apelidada enquanto pilotava os fogões na Brigada Militar, garantiu para os filhoso lema da educação como caminho para encontrar a independência.

A educação sempre foi uma janela, um subterfúgio para aquela menina preta, que, assim como muitas outras de mesma cor, poderia ter sido abraçada pela baía de Todos-os-Santos, acalentada pelo Cristo Redentor ou embalada no nordeste do país. Nesses lugares onde a “estranheza” em ser mais escuro é assimilada com mais recato. Ou ao menos, onde se estabelece o ilusório sentimento do preconceito passar despercebido com mais facilidade, pela possibilidade de você ter crescido no entorno de seus iguais. Mas, como toda exceção na vida de minha avó, ela vem ao mundo a 155 quilômetros de Porto Alegre, no sul do país, na cidade colonial de preservação da cultura alemã e de preterimento dos “diferentes”: Santa Cruz do Sul.

Poder entrar na casa da minha avó e encontrá-la cozinhando e pronta para receber com toda a ternura de alguém que tem muito amor para dar, é uma memória recorrente minha e de outros familiares. Isso permanece vivo, mesmo depois de quase três voltas ao Sol desde a sua partida. Porque o ambiente sempre foi esse, a mesa sempre posta, sem melindres. Casa de Vó. Casa de Mãe. Sempre cabe mais um. Toca Alcione no rádio da cozinha, a porta aberta aguarda alguém retornar da rua enquanto uma costeleta de porco é assada e uma abóbora caramelizada em preparo pretende completar a mesa para os outros que também chegam para o almoço.

Infância

Essa foi a vida que Maria Eva batalhou para construir e prover para seus entes queridos. No entanto, nem sempre foi assim. Esse foi um mecanismo para tapar as lacunas do amor

que não teve, da fome que passou e da educação que lhe foi negada. O sorriso largo, o abraço fraterno e a voz imponente omitiam também um passado de resiliência.

Foi criada com outros quatro irmãos; todos homens. Digo, existira também uma irmã:

— Mas ela ficava trancada no quarto, morreu mocinha na “beirada” da infância para a adolescência, a causa da morte foi de tuberculose. É o que narra a minha mãe brevemente sobre a irmã que minha avó teve e com quem pode dividir, por uma fração de tempo, o fardo de ser mulher, preta e tudo mais que isso significa quando se está a quilômetros da capital e no interior do Rio Grande do Sul.

Sempre preocupada com a família, talvez o apego com a irmã estivesse na compreensão mútua da angústia de, mesmo tão novas, terem de carregar as responsabilidades e ocuparem os não-lugares atribuídos ao gênero feminino, somado ao fato de serem da família de “Schwarzen”. Antes de buscar a vida na cidade grande e largar para trás a rotina pacata em Santa Cruz, Maria sonhava em finalizar os estudos e ingressar na área da saúde como enfermeira. Era um sonho possível para as “Marias” tradicionais daquele contexto. Mas a receita original para as mulheres do decurso incluía o pacote completo com marido, crianças no entorno da saia, panelas no fogão e uma boa dose de submissão e subserviência.

Desde muito cedo, a cor da pele, o gênero e a classe social limitaram suas escolhas e, consequentemente, suas possibilidades. Ser uma boa menina, estudiosa, aprender o dialeto alemão para comprar “Kartoffeln” para o almoço ou “Waffeln” para o café da manhã na venda da esquina, cuidar dos irmãos e ser renegada nas relações cotidianas não fez com que o universo tivesse pena da história dela ou lhe poupasse de tragédias. A falta de entendimento para os sonhos “lunáticos” de Maria e a interpretação equivocada do seu olhar à frente do tempo eram realidade dentro de casa também, como reflexo da sociedade para aqueles que nasciam na década de 1930. Enjaular seus desejos, reprimir seus talentos e resguardar sua essência era a política do não dito. Ninguém proibia, mas ninguém incentivava.

“Minha avó não gostava de mulheres, as mulheres eram culpadas das desgraças do mundo”, conta a minha mãe sobre a relação que minha avó tinha com a própria mãe no período inicial da vida. Para a época, era quase um sentimento de “ganhar na loteria” ao engravidar de um menino. Então, nessa partida, Eva perdia de 5x1. Por isso, desde nova tinha essa gana pela conquista da sua independência. Era criança aindaquando lavava, passava e reparava nas crianças das patroas dos comércios locais. Ia para a lavoura também se precisasse. Tinha necessidade de fazer dinheiro para ajudar em casa e contribuir no sustento da família.

Ela tinha uma relação boa com o pai e tinha de se contentar com o que significava um pai bom aos moldes da época. “Comprava balas e não tinha rancor”, assim afirmou minha mãe. Com o trabalho desde muito criança na roça, nas casas dos locais da cidade, cuidando de crianças e limpando as casas, acabou por interromper os estudos nesse ir e vir.

Eva casou com 20 anos com o primeiro marido, com quem ficou casada por dezessete anos. O marido era sargento do exército, advindo do Belém do Pará. O nortista recém-chegado tinha por volta dos 21 anos. Ela foi passear na praça em frente à catedral de Santa Cruz, onde começou a flertar. O caso ficou sério, e o rapaz prosseguiu aos moldes da época e pediu a mão da moça aos pais, que aceitaram com ressalvas. Pai de oito dos seus filhos, decidiu que deveriam tentar a vida em Porto Alegre.

A vida em Porto Alegre

“Filho meu não carrega sobrenome de mulher”, recorda minha mãe que testemunhou a fala sempre proferida pelo pai. Todos os filhos carregam somente o sobrenome dele, ainda que durante aproximadamente 90 meses de sua vida Maria Eva tenha embalado em seu ventre e consagrado com a benção o nascimento e a vida de todos os seus filhos.

Sem as bênçãos do pai de Maria, o casal embarcou de mudança para Porto Alegre. A família já antevia dificuldades, visto o histórico de dependência à bebida e “tragos” do rapaz. Chegando aqui, foram morar nas periferias da cidade. O militar saiu do exército, e Maria tinha de segurar as pontas nos bicos que arranjava nas casas de família. Quando arrumava um emprego bom, o ciúmes tomava conta e ele interrompia os cruzeiros que compravam os mantimentos do mês.

Precisando embalar os três primeiros filhos, conciliava a vida entre os empregos que conseguia e a relação conturbada com o marido, que oficializaria a união em papel, em 1964, com o nascimento da primeira filha.

O marido conseguiu emprego em uma empresa urbana. Os filhos recordam de ter uma vida “mais farta” nesse período. Um carro do serviço entregava o rancho e às vezes acontecia até distribuição para o bairro. Tudo sempre acompanhado da “beberragem”. Nesse período, as agressões físicas e o destempero do marido renderam marcas que atravessam para além do emocional. O melhor serviço na época, na Rainha das Noivas, foi encerrado com mais um caso de embriaguez e ataque do companheiro. Antes de pôr fim aos abusos no casamento, em 1972, gestou mais quatro vezes. Em uma dessas, nasceu minha mãe.

Enfermagem — outro sonho em curso

A peteca não caiu. A educação sempre foi uma bússola na vida de Maria. Na educação não havia ressalvas e nela poderia encontrar a possibilidade de emancipação. Longe da angústia de um casamento difícil, retornou aos estudos e iniciou o curso de auxiliar de enfermagem. Formada e depois de atravessar fases nebulosas ao longo da sua vida, o medo de “ver sangue” interrompeu esse capítulo na área da saúde.

Contudo, na casa de uma das patroas do período em que cursava enfermagem, construiu uma relação de afeto. A mulher percebeu um potencial de Maria para atuar em outras áreas. Indicou que ela trabalhasse em fábricas e foi onde conheceu o segundo marido, portuário e lutador de boxe. Através das relações que construiu, recebeu uma carta para se apresentar na Brigada Militar. Nessa fase como funcionária pública, cozinhou para muitos militares e, na beirada dos fogões, carregou no ventre por nove meses um filho que, depois do primeiro aniversário de vida, virou estrela — longe dos códigos eclesiásticos, diria que ele ganhou um jazigo no Jardim da Paz.

A vida não é tudo preto no branco. Nem tudo que começa de um jeito precisa necessariamente terminar de outro. Foi nessas brechas e frestas de oportunidades que Maria Eva inventou o seu lugar no mundo. Mesmo com as negativas de uma sociedade que não parecia apresentar lugar para a sua existência, ela não se deu por vencida e atravessou esses dilemas. Ergueu seus filhos, sua casa e Certamente, seria uma desonra para ela se esse apanhado de palavras a reduzissem às mazelas que passou. É no encontro dos seus filhos, netos, sobrinhos, bisnetos que esbarram os seus maiores feitos e a sua realização.

A menina preta criada na colônia, letrada somente até a quarta série do Ensino Fundamental, encaminhou e assistiu todos os oito filhos tornarem-se funcionários públicos. Com orgulho, fez plateia para os herdeiros que viraram juristas, professores e militares. Ensinou os netos a voarem. Planejou voos que os levaram da universidade pública até — ironicamente — a Alemanha. Deixou para todos o ensinamento de encarar a vida com obstinação e ternura. Por aqui, ninguém deixou a peteca cair e nem o samba acabar. Levam o principal de tudo que aprenderam debaixo do teto dela, no prédio verde musgo desbotado. Seguem todos, como ela ensinou, dançando conforme a cadência da vida.

Maria Eva e neto | Foto: Arquivo Pessoal

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