PERFIL

A rainha das tesouras

Arthur Eduardo
Casa e Rua
Published in
6 min readMar 28, 2023

--

A casa tem seu portão robusto e que dificulta a visão para dentro. Para dentro, ou se olha agachado ou na ponta dos pés .O tom avermelhado entrega as repinturas que já aconteceram lá. Andrea conta que já foi azul escura e teve um breve período na cor branca. A garagem tem uma claraboia para evitar que a cerejeira da casa suje o carro e, claro, que não molhe na chuva.

A casa, obviamente, se distancia da que Andrea uma vez teve quando vendia cocadas de cor azul — aquela era humilde e de madeira –, na qual acredita ter ficado até 2008. Essa casa, segundo Andrea, tinha o piso cedido em determinado local perto da soleira da porta e era alugada, por isso que se mudou.

Andrea, uma mãe de 52 anos e, como todas as mães, uma pessoa que trabalha o dobro apenas por ser mãe. Ela conta que a experiência de ser mãe foi impactante na sua vida. Claro, o primeiro filho nasceu quando ela tinha 16 anos. Ele cresceu em um lar financeiramente menos estável, mas com um pai mais presente. Andrea conta que, em determinado momento, ele escolheu morar com o pai na praia, onde o pai já vivia desde a separação.Depois, viajou para mais longe e hoje mora em outro país. Uma vez estabelecido em outro país local e outra cultura, seu filho Rodrigo a visita pelo menos uma vez ao ano com sua esposa.

O trabalho permanece dobrado para Andrea porque ainda sustenta o segundo filho, Carlos, um jovem de 20 anos. Carlos, para infelicidade de Andrea, saiu de casa no final do ano passado para cursar faculdade na capital Porto Alegre. Depois de um longo período juntos durante a pandemia, Andrea não imaginava que realmente chegaria o dia que Carlos precisasse sair .Claro que entendia o que iria acontecer, mas não que seria tão rápido aos olhos dela. Em visões realistas, foi mais de um ano com o filho em casa, mas uma mãe sempre acha pouco o tempo que tem com o filho.

Andrea relembra que, no sofá em formato de L que fica na sua sala do primeiro andar da casa, foi onde passou a maior parte do tempo com seu filho mais novo. Lá tinham o costume de ver a novela juntos, jantar e, em determinado período de 2016, olhavam uma série que coincidiu com a adoção da cadela da casa. Hoje Daenerys Targeryen é uma beagle que anima a mãe sem os filhos que saíram de casa.

Andrea é uma cabeleireira, mas nem sempre foi. Na época que tinha apenas Rodrigo, fez de tudo: atendente de supermercado, dona de casa, recepcionista, vendedora de motos e também fazia doces para vender de porta em porta no centro de São Leopoldo. Foi casada com o pai do primeiro filho até a idade de 24 anos. Uma vez solteira, em uma fase da vida que não tinha muitos recursos, precisou trabalhar como nunca para manter o filho. . A família ajudou e Andrea conta que sua mãe Edith e sua irmã Ângela tiveram papel fundamental na criação de seu filho mais velho.

Os dotes culinários já se mostravam presentes nessa época e depois se tornaram sua forma de sustento durante um longo período. Andrea morou em diversas casas durante sua vida adulta. Com Roberto, seu ex-marido, morou na zona norte de Porto Alegre em um condomínio mais acessível, mas de onde guarda ótimas recordações, pois foi lá que Rodrigo viveu boa parte da sua infância. Depois se mudou e viveu um período na praia de Atlântida. Voltou a morar com a sua mãe no interior, morou com sua irmã, de favor na casa de uma vizinha e amiga da família e, por fim, se mudou para a famosa casa de madeira em que vendia cocadas.

Uma vez vendendo cocadas, Andrea conta que a escolha pela cor diferenciada se deu com o claro intuito de ganhar clientela na novidade. As pessoas, acostumadas com as cores padrão de uma cocada, se chocavam com a cor azul e compravam com a esperança de um sabor muito especial. Andrea conta que o fluxo de clientes em busca da cocada inédita era alto e foi o suficiente para manter sua humilde vida estável durante cerca de três anos. Um mês mais abaixo e um mês mais acima do que o outro, uma variação normal. Em determinado momento, por obviedade, o clamor popular diminuiu visto que a cocada não apresentava nada de especial além de diferença na cor.

Com isso em mente e com uma grana guardada, Andrea fez um curso profissionalizante como cabeleireira cabeleireira e isso mudou sua realidade para muito melhor. Não foi instantâneo. Uma vez formada, foi trabalhar em um salão do centro da cidade em acordo com sua irmã que também seguia essa mesma área. A sala comercial escolhida pelas irmãs era minúscula e mal cabia uma cadeira para cada uma atender, mas era a realidade. A vida de Ângela estava em outro momento e, após dois anos trabalhando com a irmã, saiu da sociedade e foi morar em Santa Catarina com o esposo da época.

Mais uma vez com a adversidade batendo na porta e tendo que lidar com um salão como única responsável, Andrea conta que sentiu medo de falhar e não conseguir manter o negócio e sustentar seu filho que tinha acabado de se transferir para um colégio mais caro. Um cliente de cada vez e vários dias seguidos até mais tarde trabalhando foram percalços traçados por Andrea para uma abrupta evolução profissional e um caminho para uma segurança financeira. Dois anos após a saída de Ângela para outro Estado, o salão de Andrea mudou- se e agora residia em um estabelecimento bem maior. O fluxo aumentou quando a equipe de trabalho também cresceu com ela.

O caminho trilhado no ramo de salões de beleza foi tão curto quanto poderia ser um emprego em que precisa lidar com funcionários comissionados; ou seja, sem vínculo empregatício que os obrigavam a obedecer a demandas visando um bem-estar da empresa. O esgotamento do vínculo se daria mais adiante na pandemia, mas antes disso o salão prosperou na medida do possível durante cerca de nove anos. O salão se chama “Embelezamento AA” e Andrea conta que a festa de 10 anos foi muito especial porque foi quando Ângela voltou de Santa Catarina e juntas atenderam as clientes durante uma tarde como faziam no começo da carreira. Foi uma tarde regada a bolo, blindagens capilares e um bom champagne para comemorar junto das clientes.

Como comentado, a pandemia atrasou a saída de seu filho Carlos de casa, mas não só isso. A pandemia devastou a segurança financeira de Andrea porque precisava manter o aluguel do salão em dia e não podia abrir por ser um local de alta contaminação. A solução adotada foi inevitável:fechou o salão de vez, pediu o auxílio emergencial do governo e, quando era mais seguro, reabriu o salão na garagem de sua casa. Agora não tinha mais funcionárias, era apenas ela, seu filho e sua cadela Danny ajudando a manter o salão funcionando. Durante um ano foi assim, o salão estava localizado na garagem interna da casa onde antes ficava o carro de seu esposo — que atualmente precisa estacionar na frente de casa durante o dia. Com meio dúzia de varridas e algum espelhos colados na parede, o que um dia foi uma garagem virou um salão de muita qualidade e sem perder em nada para o que tinha no centro da cidade. A pandemia se arrefeceu com o tempo e as clientes voltaram a aparecer. Semanalmente visitavam para cortar o cabelo, ou apenas falar da vida. Andrea entende que a vida de uma cabeleireira também é isso: além de refúgio para combater as inseguranças e deixar a pessoa mais bonita, é um ouvido amigo para ouvir as lamúrias insatisfeitas de clientes que poderiam talvez procurar uma psicóloga.

A vida de Andrea atualmente está assim: se casou com Maurício, com quem mantém uma relação e divide a paternidade de sua cadelinha inspirada em Game of Thrones, e administra um salão onde uma vez já foi sua segunda garagem em casa. Seu filho mais velho está morando em outro país, também é casado e atualmente o casal está à espera de uma pequena que talvez se chame Camila. O filho mais novo está morando em Porto Alegre por causa da faculdade, mas nos finais de semana vem preencher o vazio da casa que morou durante tantos anos.

--

--

Arthur Eduardo
Casa e Rua

Barbeiro , estudante de jornalismo, Front-end(1/5) e cronista de instagram