PERFIL

A Rose do restaurante

Camila Mendes da Rocha
Casa e Rua
Published in
8 min readApr 4, 2023

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Montagem feita pela autora

Na esquina direita da João Simplício com a José Maria de Carvalho existe uma casa. Uma das maiores e mais bonitas da rua. A construção é arquiteturalmente residencial. A casa é cercada por uma grade, e a primeira coisa que se vê da praça é uma varanda no estilo de deck de madeira com várias mesas e cadeiras. Para quem passa ali na Avenida Dr. João Simplício Alves de Carvalho, número 132, o Buffet Viandas parece um restaurante normal. Ninguém imagina, mas esse restaurante na esquina já tem quase 30 anos. No bairro residencial, hoje quase todo idoso, poucos negócios se mantiveram por tanto tempo.

Dentro do local existem mais cadeiras e mesas, todas com uma toalha florida e colorida com um plástico duro por cima. Uma garrafa de vidro de coca cola acolhe uma rosa de plástico em cada uma das mesas. Existem quadros de fotos com paisagens, com pinturas, fotos e itens de decoração. Mesmo não fazendo sentido a existência de alguns objetos ali, parece haver cuidado com como cada um foi exibido: é a identidade da casa e de quem mora nela, ou no caso, de quem trabalha nela.

Restaurante atualmente | Fotos: arquivo pessoal

Ninguém imagina também que a dona do restaurante já foi a auxiliar de cozinha. Rosângela Beatriz é esta mulher. Ela tem um olhar pesado, sobrancelhas cerradas e a boca permanece com os cantos curvados para baixo enquanto ela está quieta, trabalhando concentrada ou no celular. Os cabelos que normalmente permanecem presos são pretos, assim como a enorme armação de seus óculos. Ela conversa e, mesmo normalmente aparentando estar cansada, não desaponta quando o assunto é bater papo e ser gentil com o cliente. Ela conversa com o filho e o marido, que ficam por perto, enquanto não está atendendo ninguém. Mexe no celular frequentemente mas não parece ser ali que está a atenção dela. Ela observa os clientes comendo, quando eles passam com o prato servido e com a sobremesa. Ela olha como a mãe que quer confirmar se o filho comeu tudo. Ela, ao cobrar o cliente, não está preocupada com a maquininha ou com o troco. O foco naquele momento é aquela rápida conversa que ocorre por simpatia. É quando ela pergunta se a pessoa gostou da comida e sempre aceita críticas construtivas. Na comida é que ela está concentrada. No cardápio do próximo almoço ou nos clientes que podem ou não voltar no dia seguinte. Ela parece preocupada em conquistar as pessoas à volta dela, não para ela, mas para o restaurante. Ela conhece a maioria dos clientes e com eles tem uma relação tranquila. Com clientes novos ela é mais atenta. Pergunta onde mora, se gostou, se é do bairro, se gosta de panqueca pois no dia seguinte tem panqueca. Ela é a pessoa mais dominante no ambiente. Ela é quem fala com todos e com quem todos falam. Ali na cadeira por trás do caixa, com o celular na mão e o óculos caído na ponta do nariz, ela parece se encaixar. Aquele é o lugar dela.

Trabalha desde menina. Já foi doméstica, faxineira e cozinheira. Teve uma ótima oportunidade de trabalhar em um restaurante na zona norte de Porto Alegre, o Viandas, que antes era subindo a rua, num cruzamento bem pacato. Mesmo nesta época já sendo cozinheira, ela conseguiu a vaga para auxiliar de cozinha. Ela ganhava um salário mínimo e trabalhava no que precisava, fazendo de tudo para ajudar o seu Paulo, o antigo dono do lugar. Ainda hoje ela faz de tudo.

Clientes posando com Rose e o seu Paulo, na moldura azul | Foto: arquivo pessoal

O restaurante “do seu Paulo”

Quando me atendeu no telefone disse: “finalmente conseguiu falar comigo, é mais fácil conseguir uma hora com o presidente”. Realmente, depois de duas semanas de desencontros e chamadas perdidas achei que Rose havia desistido de participar da entrevista. Acontece que entre fazer as compras para o buffet, cozinhar, administrar os funcionários e as contas do negócio, a mulher de cabelos presos tenta manter uma vida saudável e vai na academia todos os dias. Mas não pensem que ela é aquelas mulheres empresárias que saem pro pilates todos os dias e estão sempre emperiquitadas. Está sempre com um avental preto por cima de roupas coloridas. Ela tem bochechas fartas e avermelhadas. Não aparenta ter mais de 50 anos, mas logo se vê que ela é uma pessoa experiente e habilidosa.

Rose é uma mulher simples, tanto na sua aparência física como no seu comportamento. É amigável e carinhosa na fala, tanto com os clientes como com os funcionários, mas é firme. Quando está pagando contas ou organizando as despesas, é séria. Mesmo não sabendo o nome de todos os clientes, sempre dá um jeito de chamar a pessoa por um apelido. Flor, querida, guriazinha, amiga.Quem vê ela por trás do caixa focada no celular pode não notar, mas ela não está sozinha. Atrás dela tem uma foto do seu Paulo. “O lugar dele sempre foi atrás do balcão, nada mais justo do que deixar ele ali”, explicou ela. O homem que criou o restaurante foi patrão de Rose por sete anos, ensinou a ela tudo que se precisava saber para tocar o restaurante, pediu que ela anotasse o número de todos os fornecedores dele uma vez para “caso ela precissase”. Quase como se soubesse que ela seria a sua sucessora. Já ela nunca teve essa pretensão.

A sexta de dez filhos foi sempre empregada e, com apenas a 8ª série completa, nunca pensou que seria empresária. “Jogaram no meu colo”. Foi isso que Rose disse quando contou como ela virou a dona. Paulo ficou doente e a auxiliar precisou assumir tudo provisoriamente. O marido Antônio, operador de retroescavadeira com o qual ela tem dois filhos, começou a ajudar a fazer as compras na Ceasa. Depois de três meses afastado, entre descobrir a doença e fazer uma cirurgia, seu Paulo voltou ao restaurante, mas nunca foi o mesmo. Ele tinha uma doença terminal e por isso decidiu se afastar. Nenhum dos filhos dele quis tocar o buffet no lugar do pai e então ele decidiu colocá-lo à venda. Todos os possíveis compradores queriam parcelar o valor de 300 mil, mas ele não queria pois sabia que não ficaria vivo para receber todo o dinheiro. Mas isso não seria um problema pra ele se a compradora fosse o seu braço direito.

Rose diz que ele começou a tentar persuadi-la a comprar o lugar. Depois de muita insistência dele e do marido, ela concordou com algumas condições. Parcelaria tudo em três anos e ela queria a foto do seu Paulo junto com ela. “É uma questão de respeito, eu ainda vejo o restaurante como dele.” Ela mantém até hoje o retrato dele e um quadro com várias notas antigas que ele colecionava, mesmo tendo que mudar o local do restaurante.
Foi durante a pandemia. O movimento diminuiu, quase parou e as contas se acumularam. Mesmo já tendo quitado o preço do restaurante, Rose e Antonio ainda precisavam pagar o aluguel do ponto. Por um tempo os filhos do seu Paulo baixaram o preço, mas depois aumentaram novamente. Acontece que a clientela ainda não tinha voltado e não dava para continuar pagando. Foi obrigada a sair de lá e foi aí que a família de Rose conseguiu alugar uma casa na esquina da mesma rua, a casa de outra família. O proprietário passou o valor de 5000 reais para 1500 e, num feriadão de 1º de maio, o restaurante mudou de lugar.

Muitos vizinhos não notaram a mudança até ela estar completa. E entre os que notaram, havia aqueles que não sabiam que aquele era o mesmo restaurante. Rose diz que muita gente não sabe o nome do restaurante, o nome verdadeiro. A maioria chama de restaurante do seu Paulo. Também por isso, quando mudou o local a clientela diminuiu.

Hoje, Antonio, Rose e o filho mais novo deles, Vinícius, de 20 anos, tentam recuperar o que um dia lucravam. Segundo ela, “ainda tá muito difícil, as pessoas estão sem dinheiro depois da pandemia, então entendo não quererem comer fora, mas pra gente é complicado se manter”. Mas este não foi o maior desafio que Rose enfrentou.

Rose com Vinícius, no caixa e com o marido Antônio | Foto: arquivo pessoal

Ainda quando Vinícius era muito pequeno, quem mais ajudava no restaurante era Antônio, nome que o irmão herdou do pai. Ele era o mais velho e tocava o lugar junto com os pais. Sempre estava lá, chegava cedo e saía tarde, fazia as compras, cozinhava, ficava no caixa e ajudava na balança. Em 20 de abril de 2016, Antonio Filho foi diagnosticado com leucemia. Quando Rose me conta isso ela fica menos falante, coloca a mão no queixo e fica séria. Ela segura o choro na garganta para poder continuar conversando. O primogênito já chegou ao hospital debilitado e neste meio tempo o restaurante não parou um dia.

Rose disse que não dava pra parar, eles tinham contas e, com um deles debilitado, o dinheiro era mais necessário ainda. Mas eles pararam. Em seis meses, eles pararam por dois dias quando Antônio faleceu. Foram dois dias de luto. Um luto que ainda não acabou. “Ainda tenho uma ferida aberta e não dá pra curar. Se não fosse pelo Vinicius a gente tinha largado tudo”, contou.

Vinícius começou então a ajudar os pais no restaurante. No começo, não era o que queria para seu futuro, mas com o tempo aprendeu a gostar do trabalho.Rose conta com orgulho que o caçula abriu o próprio MEI e quer continuar ajudando os pais no negócio. O pai é sócio do lugar, tem 50% assim como a mãe, mas brinca que a última palavra é dele. A esposa concorda rindo, “deixa ele acreditar”.

Hoje, fazendo 120 almoços por dia, a família pensa em aumentar o lugar. Antes da pandemia eram 400 almoços diariamente. Na semana em que ela contou sua história, o Viandas entrou no iFood. Eles esperam complementar a renda assim. Foi o que fizeram enquanto o buffet teve que ficar fechado. “Antônio e o Vini faziam entrega de tudo que é jeito, de bike, de carro e até a pé. Coitadinhos”. Enquanto conversa, a TV do restaurante toca música em cima da estante que carrega dois troféus. Uma homenagem do 11º batalhão da brigada, que tem alguns clientes fiéis e um prêmio de Box com o nome do Vinicius.

Mesmo com duas perdas, a Rose do restaurante e o restaurante do seu Paulo se mantêm constantes. A família dela continua alimentando diversas outras famílias neste restaurante que já foi a casa de uma. Rose ainda fica atrás do balcão, assim como o seu Paulo. O filho e o marido, quando não estão servindo, estão do lado dela. E assim ela nunca fica sozinha.

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