CRÔNICA

Além do sangue e do teto

Sophia Maia
Casa e Rua
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4 min readApr 3, 2023

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Lago Guaíba | Foto: Sophia Maia

Sete ruas separavam a rua da minha casa da rua da minha escola. E eu estava a sete ruas de distância da minha casa quando notei que eu não queria voltar pela primeira vez. Um monte de adolescentes na aula de ensino religioso tu já viu, né? Eram muitas reclamações e vontades de retornar ao lar. Em todos eles, menos em mim.

Mas voltei. E quando cheguei no meu quarto pesquisei no Google “significado de casa”, li a lista de definições. A primeira era “edifício de formatos e tamanhos variados, geralmente de um ou dois andares, quase sempre destinado à habitação”. Tudo bem, até aqui. A minha casa fica na beira do Lago Guaíba, tem um andar e, assim como a maioria das casas no Brasil, não foi feita por um engenheiro — o que acaba, no meu caso, resultando num abafamento anormal no verão e uma sensação de frio cortante no inverno.

A segunda definição que encontrei no Google foi “família; lar”. E imagino que seja daí que parta o problema. Acho, na verdade, que uma coisa está diretamente ligada à outra. O único motivo que ainda me obriga a morar na minha casa é o fato de que não posso bancar sair daqui. Eu até que tive uma infância feliz, sabe. Era fácil: bastava fingir que estava contente enquanto eu usava roupas cheias de babados e laços no cabelo. Podia brincar, mas sem suar muito. Me parecia justo.

Quando eu fiz quinze anos, a minha madrinha foi me visitar. Ficou horas conversando com a minha mãe, “a gente é comadres desde o magistério”, elas diziam. Minha madrinha se empolgou falando da filha mais velha dela, que na época tinha 21 anos, e era seu motivo de orgulho: “logo a bebê dela vai nascer, acredita nisso, meu bebê tendo um bebê? Mas eu não posso me queixar da minha filha, ela fez tudo como deve. Estudou e encontrou um bom marido. Mais velho que ela, que maravilha! Sabe como é homem, né? Os meninos da idade dela ainda são muito guris. Ele ganha um dinheiro bom, e se Deus quiser não vai pedir pra ela voltar a trabalhar depois da licença”. A tarde toda foi ocupada por variações dessa conversa, dita sob novas palavras a cada vez que se repetia. Enquanto isso, o bolo preparado na noite anterior se tornava cada vez menos delicioso, com seus confetes derretendo e formando rastros ao mesmo tempo coloridos e esbranquiçados na cobertura de chocolate.

Conforme a sombra do sol passava pela parede amarela, eu pude notar minha mãe ficando cada vez mais irritada. Tudo bem que eu também já tava ficando de saco cheio desse nariz empinado, mas eu só fui entender o real motivo quando a dinda foi embora. “Tu não percebeu que a tua dinda tava tentando me causar inveja?”, ela perguntou. Respondi que não tinha entendido, inveja do quê?

“Inveja, ué. Da filha que se veste igual a mulher que ela é, que arrumou um bom marido e que está grávida. Feita na vida, ganhou na loteria. Ela sabe que eu não vou viver isso”.

Eu fiquei em silêncio. “E não me olha com essa cara que agora tu já tá na idade de entender. Durante todos esses anos eu tentei mudar esse teu jeito, achei que poderia ser uma fase ou só a tua personalidade. Mas quanto mais o tempo passa, mais eu tenho nojo de notar que tu realmente vai ser desse tipo. Espero que tu não tenha esperanças de que algum dia eu aceite minha filha se vestindo igual um macho. E se eu souber que tu anda de gracinha com alguma guria na rua, pode arrumar as tuas coisas, que aqui dentro tu não fica”.

As sete ruas que separam a minha casa da minha escola começaram a parecer muito pouco depois desse dia. A minha vontade é de sempre ir mais longe, de caminhar até os pés doerem.

Hoje, três anos depois do meu aniversário de quinze anos, eu entendo porque a minha casa não é o meu lar. Porque o lar não sufoca e nem faz sentir vergonha.

No meu caso ele ainda não existe, mas um dia vai. E nele, eu irei abraçar e viver todas as nuances que me constituem. O meu amor pela cor verde musgo e por músicas que não falam em Deus, a não ser quando fazem isso de forma irônica. E no meu lar eu vou amar mulheres o suficiente até que eu encontre uma mulher que eu amarei mais do que as outras. Isso não é estar feita na vida?

No fim, a minha mãe está certa: não espero que ela me veja sendo feliz porque isso significa coisas distintas para nós duas. E os anos em que vivemos na mesma casa me fizeram enxergar que, além do sangue e do teto, nós não compartilhamos mais nada.

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