PERFIL

Chegar ao penúltimo destino

andressa pufal leonarczik
Casa e Rua
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6 min readMar 28, 2023

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Hilda | Foto: Andressa Pufal

Hilda chegou desconfiada e agitada para a nossa primeira conversa. Usava uma blusa floral verde, com desenhos de plantas e flores — o que depois foi justificado quando ela comentou que gostava muito da natureza. É uma senhora com seus 1,60 metros, não é gorda nem magra, mas carrega na barriga a história de quem engravidou três vezes. Usa o cabelo liso preso atrás, a pintura escura já está chegando na metade — como quem já não quer esconder mais nada — e o grisalho denuncia a longa caminhada da vida. Tem a pele branca, clara, e algumas marcas de expressão lhe rasgam o rosto. Os olhos castanhos amendoados me olhavam toda. Hilda me olhava nos olhos, mas também analisava todo o resto, como se quisesse decorar cada aspecto da minha aparência. Além dos olhos buliçosos, o rosto traz um nariz longo, que aponta para baixo, na direção dos lábios finos que contornam a boca. Suas mãos e pernas são inquietas, parecem trazer uma agitação não mais suportada pelo corpo de 68 anos. Parecem querer explodir de tanto terem que ficar sossegados. Já estavam sossegados há muito tempo.

Do lado de fora era tudo verde. Nas plantas e folhagens que ocupavam o perímetro do lugar, e também na pintura do concreto que dava forma às paredes. Era bonito, espaçoso e nem parecia dentro da cidade. Ficava no vale do Morro da Polícia, que se avantajava à sua frente. Por dentro, o monocromatismo também imperava. O lugar parecia muito um hospital. Tinha longos corredores pintados de um branco quase insuportável e passavam apressados enfermeiras e enfermeiros caminhando revestidos por jalecos alvi-neve, se camuflando no ambiente. No comprido do corredor, decoravam as paredes retratos de santos, de Jesus, de Maria. Eles tinham aqueles olhos que seguem os passos de quem atravessa seus campos de visão. Quebrando o branco das paredes, se viam as portas que levavam aos quartos — aqueles quartos que agora cabem a vida inteira. Dentro dos dormitórios, quatro vidas se colidem: no lugar, eles são divididos entre quatro pessoas. Em cada um dos quatro cantos, se encaixava uma cama. Ao lado delas, as mesas de cabeceiras eram decoradas apenas pelo caos de centenas de caixas de remédios. E o que dava privacidade às colegas de quarto eram os guarda-roupas marrom escuro de três portas que serviam, também, como paredes. De duas janelas gradeadas jorravam as listras de luz natural que iluminavam o local, que cheirava a laranja doce artificial. Espremidas, aquelas vidas têm que conviver e achar um espaço para serem naqueles trinta metros quadrados — o que dá 7,5 metros quadrados para cada um. Planejado para ser a última casa de muitos, não tinha muitas coisas de casa, menos ainda de lar.

Hilda tem uma voz aguda, arranhada, quase esganiçada e, com ela, me conta que já mora em asilos há quase uma década. Ela vive no primeiro andar, no setor das Orquídeas, o que significa que ela não precisa de tantos cuidados quanto os que ocupam os andares acima. Segundo ela, foi pro primeiro asilo por medo de ficar sozinha em casa à noite, e lá ficou quatro anos. No de agora, ela já faz morada há cinco anos e quatro meses. Essa é a quarta e última casa em que Hilda vai morar. E, com ela, trouxe uma mala com roupas, lençol, colcha, fotos e “uns quantos sapatos, porque eu adoro sapatos”. Trazendo o que cabe da vida numa mala de mão, os 7,5 metros fazem um esforço e acabam se tornando lar. “Mas eu sei que eu não posso andar nua”, brinca.

Hilda é viúva há 21 anos. Se casou com o primeiro namorado, Tomás, e teve um casamento de três décadas. Tomás era alto, moreno e “parecia o Tony Ramos jovem, porque era peludo e às vezes deixava uma suíça”. Tomás foi o grande amor de Hilda. Com ele, ela aprendeu tudo, foi feliz e pariu três filhos. Um ela perdeu com seis meses de vida; os outros, Tânia e Paulo, hoje têm 49 e 47 anos de idade. Hilda nasceu em Rio Grande, cidade banhada por água por todos os lados, em 29 de novembro de 1954. Era a sexta filha de oito irmãos: César, Sebastião, Gregório, Lúcia, Eva, Hilda, Ana e Jorge. Seu pai, Hermínio, era marinheiro e a mãe, Maria, era costureira. Juntos, os dez moravam numa casa na Avenida Portugal, a uma quadra da Lagoa dos Patos. Como se estivesse treinando desde cedo, Hilda dividia o quarto com as três irmãs, mas, na época, elas tinham um pouco mais de trinta metros quadrados para fracionar. Quem mora entre duas lagoas e o oceano não tem muita alternativa a não ser se deixar levar pela correnteza. Pai e filhos homens se tornaram “marítimos”, como ela fala. As filhas foram construindo seus próprios canais para desaguarem em outras águas. Aos dez anos, Hilda perdeu seu irmão, Gregório, para as águas salgadas. O navio em que estava junto com outros 32 tripulantes afundou nas proximidades da Argentina. Nunca acharam ninguém. “Era mês de junho e tinha muito tubarão na época.” Sua mãe não pôde enterrar o filho e acabou se afundando nas próprias águas salinas. “A vida pra minha mãe acabou ali, ela ficou uma pessoa triste.” O mar, mesmo que espelhe o céu, continua tendo seu abismo e fazendo as mães chorarem. Mas, como se ecoasse o canto mitológico das sereias, continua atraindo novos marujos. Tomás, igualmente à parte masculina da família da esposa, virou marinheiro. Viajava e chegava a ficar três meses fora. As ondas levavam e traziam as pessoas de Hilda num vai-e-vem eterno. A presença é transformada em intermitente; as palavras, em saudações; a vida, em zona portuária. “A gente tenta, mas não se acostuma”.

Hilda se casou aos dezessete anos. Teve uma infância “pouca”, mas não sente falta. Começou a trabalhar muito cedo, em farmácias, armazéns e numa loja de roupa masculina para festa. Depois, se mudou para Porto Alegre com Tomás, onde teve a primeira filha aos dezoito anos. Fez um curso de técnica de enfermagem, com o que viria a trabalhar por três décadas. Trabalhou em alguns hospitais da Capital e se aposentou com cinquenta anos. Perdeu o marido cedo: uma parada cardíaca aos cinquenta e dois anos. Numa vida cheia de inconstâncias, a única coisa que se fez perene foi a falta. Desde a infância, a ausência se faz presente na vida de Hilda. A ausência que um dia cessa e a ausência que pra sempre permanece. Hilda lida com a morte desde que a correnteza não trouxe de volta seu irmão. A vida se fez chuva que cai em prantos dos olhos quando a maré que leva e traz não trouxe de volta seu filho, seu marido, seus pais, sua nora, seus irmãos. Sendo forjada pela vida em cais, Hilda agora vive no porto de onde vê ir embora muita gente. Ela mora em sua última casa. A última casa de todos que passam por ali. É como se estivesse se preparando pra isso durante toda a vida.

Hilda mora no primeiro andar, onde ficam as alas de cuidados nível um, a feminina, Orquídea, e a masculina, Lírio. No segundo andar, vão os que precisam de mais cuidados, nas alas dos Cravos e das Rosas. E no terceiro, mais perto de Deus, ficam os que não têm mais outro lugar pra subir, senão o céu. Hilda é a mais nova do lugar. Ainda não chegou à grandeza dos setenta, nem à majestade dos oitenta. Destoando das neves dos cabelos desgastados e dos corcovados das costas que carregam muito, acha engraçado quando “falam que aos 60 é a melhor idade. Eu não vi nada disso!”. Talvez não fosse pra ela estar ali ainda. Talvez os cabelos devessem perder mais um pouco a cor, talvez as pernas devessem se enrijecer mais e as rugas devessem ficar mais profundas. Talvez o mundo ainda suporte ver ela caminhar sem lhe pregar peças, e as pessoas ainda tolerem a presença dela nos lugares. Talvez ela não devesse se exilar no mundo dos que não cabem mais. Mas lá está ela, por medo de ficar sozinha à noite, diz. E acostumada com casa cheia, Hilda divide os quatro mil metros quadrados do lugar com mais de uma centena de expatriados. Mas compartilha o quarto apenas com Mareli, de oitenta e quatro anos. Mareli é sua melhor amiga e as duas dividem o cômodo há dezesseis meses. As outras duas ocupantes do dormitório se mudaram pros andares de cima. Hilda já foi porto de seis moradoras, que chegam, desfazem a mala, vivem o que puderam trazer e vão embora. Sobem. “Eu já estive lá em cima. É horrível.” Viver lá é estar muito perto do seu destino.

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andressa pufal leonarczik
Casa e Rua

jornalista em formação pela UFRGS. repórter de cultura do Jornal do Comércio de Porto Alegre. escrevendo não-ficção, o rascunho da história