Crônica

Contei para minha avó

Gabriela Ferreira
Casa e Rua
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5 min readMar 28, 2023

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Era uma terça de manhã quando peguei o ônibus Restinga Nova Tristeza. Por 40 minutos percorri a zona sul com destino à comunidade em que eu nasci e cresci. Pensei em colocar os fones para ouvir música, mas preferi ficar atenta a cada detalhe daquele caminho que tanto fiz por anos e que hoje soava diferente.

Quando entrei na rotatória que dá acesso à Restinga fui transportada para uma viagem a um tempo que não volta. Pelas janelas vi que os lugares são os mesmos, mas com fachadas diferentes. Imagino se por dentro ainda permanecem iguais. Pensei no tempo em que minha avó estava aqui. O nome dela era Ana. Ela tinha as bochechas mais rosadas que já vi, o cabelo pretinho e a pele branca. Entrar no bairro Restinga me levou de volta a ela. Quando desci no terminal de ônibus Nilo Wulff e pisei no chão da minha infância, senti falta da sua mão macia me levando por todo canto daquele bairro.

Terminal Nilo Wulff no bairro Restinga. Foto: Gabriela Fereira

O terminal permanece o mesmo. Pessoas apressadas subindo e descendo pra viver a vida cidade a fora. Atravessei a rua e me deparei com a banca de revistas onde toda semana eu parava pra adquirir a Atrevida e a Capricho da semana. Era meu início no Jornalismo e eu nem sabia. Segui pela rua João Antônio da Silveira e virei na Rua Oscar de Oliveira Ramos, que tanto já andamos juntas à caminho de casa. Mas foi quando cheguei nas escadas que dão acesso ao barranco da nossa casa que a emoção tomou conta. Quase pude te sentir fisicamente ali. O caminho até a rua Acesso B foi com o coração apertado. Fazia anos que não o percorria. Desde o teu falecimento.

A emoção aflorou assim que dobrei a esquina da rua da casa. Foto: Gabriela Fereira

Está tudo diferente, vó. Não reconheci as casas e nem os vizinhos. Mas, na nossa casa o tempo parece que não passou. A única coisa que mudou foi a cor, agora é vermelha! Tu terias gostado, lembra o teu colorado. A nossa casa era simples, mas cheia de amor. Minha avó construiu no pátio um sobrado para o meu tio também estar por perto dela. Ela gostava da família o mais perto possível. E por muito tempo foi assim. Depois aos poucos foram saindo. Até que restou eu, ela e a bisa Teresa. Só nós três.

Elas me acordavam cedo pra ir pra escola que era algumas ruas atrás de casa. A bisa ficava na janela esperando meus colegas passarem pra que eu saísse junto e não me atrasasse. Depois da aula a mesa me aguardava com comida nova e quentinha. O feijão da bisa, que na época eu não queria comer, hoje dava tudo pra poder comer só mais uma vez. A felicidade aumentava ainda mais quando tinha bife de carne moída com ovo, hoje é a comida que mais acalenta meu coração quando a saudade bate.

Depois do almoço, a bisa Teresa sentava para ler o Diário Gaúcho. Imagina só se vocês tivessem aqui pra me ver trabalhando na RBS. Teriam tanto orgulho que espalhariam pelo mundo, ou pelo menos pelo bairro Restinga. E pediriam para que eu trouxesse um exemplar do Diário todos os dias. Me escutariam na Rádio e falariam pra todos os vizinhos: minha neta vai ser jornalista!

A casa que antes era verde agora é vermelha. Foto: Gabriela Fereira

Segui até o final da rua e encontrei a creche que eu frequentava. A minha primeira escola. Creche Cantinho do Pimpolho. Onde aprendi a ler e fui oradora da turma na minha primeira formatura. Tu estavas lá na primeira cadeira. Infelizmente essa foi a minha única formatura que teve a sua presença física. Sentei na calçada por alguns minutos para ouvir as crianças rindo, chorando e gritando. Cheias de vida.

“É hora do papá’’. — Ouvi a professora dizer.

Essa sempre foi minha hora favorita.

A creche Cantinho do Pimpolho permanece igual. Foto: Gabriela Fereira

Voltei caminhando pela mesma rua pra poder ver só mais uma vez a casa que um dia foi nossa. Observei com cuidado o interior dela. A parede da sala já não é composta por quadros de fotos de todos os filhos e netos, agora é uma parede branca. Na TV já não passa mais o DVD do Padre Fábio de Melo que tu tanto gostava. Na cozinha, já não tem mais o cheiro da comida da dona Teresa. No pátio agora tem uma casinha de cachorro, o Gaspar teria gostado. O número 3202, onde por muitos anos foi casa de duas idosas tão queridas pela vizinhança, hoje é ocupado por outra família. Espero que eles sejam tão felizes quanto nós éramos, vó.

Segui de volta pra rua João Antônio da Silveira e virei novamente na Rua Oscar de Oliveira Ramos. Resolvi caminhar mais um pouco e ver como estava o centro comercial que tanto frequentamos. A locadora, que era o meu parque de diversão, virou um bazar. A sorveteria, que o tio Guga me levava, agora é uma padaria. O Papel Novo, o meu lugar favorito no bairro, onde a senhora me deu os meus primeiros livros, permanece firme por ali. O céu estava bem azul, e as ruas movimentadas demais para uma terça de manhã. Mas esse é o bairro Restinga. Um bairro que nunca para. Jamais.

A rua João Antônio da Silveira segue movimentada. Foto: Gabriela Fereira

Rumei de volta ao terminal de ônibus Nilo Wulff. A cada passo que dei pelo bairro lembrei da senhora sempre parando para falar com algum vizinho que perguntava como estava a vida. Lembrei de quando eu parava na banca de cachorro quente com a minha mãe e pegávamos um lanche para comermos todas juntas. Lembrei dos dias que chorei com a tua partida e que cada canto desse bairro doía meu coração por lembrar de ti. Por aqui muito mudou, vó, mas tu ainda está por tudo. Hoje te senti perto de mim como não sentia há anos. No nosso bairro. Sentei novamente no Restinga Nova Tristeza para voltar pra casa, que agora é tão longe daqui. Do meu lado, a mochila levava a bagagem de uma infância repleta de memórias boas, ao lado da minha avó Ana, no Bairro Restinga.

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Gabriela Ferreira
Casa e Rua

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.