CRÔNICA

Casa rua

Vinicius Alves
Casa e Rua
Published in
3 min readApr 4, 2023

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Casa 645 | Foto: Vinicius Alves

O silêncio que paira sob a sala da 645 talvez nem tenha ideia do turbilhão de coisas que já passaram por ali. Para quem vem pela Cruzeiro do Sul, a casa de número 645 é a segunda à esquerda ao entrar na rua. Aos que entram pela Corrêa Lima, é a penúltima à direita. Já para aqueles que procuram grandes histórias, é a primeira.

Parece que o portão marrom — que outrora já foi cinza e nos últimos tempos até telhadinho ganhou — muitas vezes é inexistente. Não há um limite entre a casa de número 645 e a rua em que está localizada. É como se em muitas vezes essas duas coisas se transformassem em uma só. É um vai-e-vem de gente nessa casa que até eu confundo um pouco. E olha que já passei por aquele portão algumas boas vezes durante a minha vida.

É o primo do interior que não vê a família há mais de 10 anos, ou até mesmo o tio que dá uma passadinha por ali para ver se “tá tudo numa boa”. Ah, e fora aquele parente que precisa vir a Porto Alegre para uma consulta médica. Todos entram na rua com um mesmo destino: a casa de número 645.

O lado bom é que agora dá para se preparar com o que está prestes a entrar naquele portão. Isso porque o silêncio que paira sob a sala da 645 é interrompido, por muitas vezes durante o dia, pelos latidos incessantes da Laila e da Belinha que praticamente funcionam como um sensor de gente que passa pela frente da casa — às vezes os latidos acabam virando até em briga generalizada entre as duas no meio do pátio.

Pode ter certeza que agora a anfitriã vai saber direitinho quando estiver próxima a visita daquele conhecido que a vê como uma espécie de psicóloga de conselhos sobre a vida ou a chegada de um morador de rua para pedir um prato de comida (há também aquelas visitas indesejadas mas isso a gente deixa para outra história…).

Esse limite entre a 645 e a rua realmente parece ter parado de existir. O irônico de tudo isso é que em algumas ocasiões ela acaba sendo afetada indiretamente por acontecimentos difíceis de evitar. A casa fica próxima da esquina da rua e se localiza ao lado da associação de moradores do bairro. Pensa numa concentração de gente em festas tradicionais como festa junina ou a criançada formando uma fila em frente ao portão para pegar um presente no dia das crianças e no natal. A rua costuma ser fechada para essas festividades exatamente na mesma altura que se localiza a 645. Por ali já passou de tudo. Uma vez montaram até um palco na frente da casa e durante o dia ocorreram alguns shows de funk — longe de ser o estilo musical favorito de quem mora na 645.

Por falar em funk, teve uma época que o vizinho de trás costumava ouvir tão alto, mas tão alto, que nem as plantas do pátio conseguiam repousar. Se por trás da casa se ouvia o funk, na frente era lugar das risadas e das conversas altas daqueles que costumavam se reunir para se refrescar. Há alguns anos, um dos hidrantes da rua era aberto durante os verões escaldantes de Porto Alegre e funcionava quase como uma piscina pública ao ar livre. Tudo isso em frente à 645.

Era água, era gente, era música alta. Nunca na minha vida vi uma casa tão movimentada como a 645. Parece que aquele lugar foi feito para isso. Há indícios de que, antes mesmo das chegadas dos atuais moradores, o lugar já era tão movimentado quanto. Também há quem diga que aquele terreno foi o primeiro habitado na região. É por aí que me questiono sobre quem veio antes: a 645 ou a rua?

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