CRÔNICA

Quem tem medo da morte?

Fabi Anjos
Casa e Rua
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4 min readMar 28, 2023

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Portal Revertere Ad Locum Tuum | Foto: Fabiane Anjos

São 16h27 de uma segunda-feira de verão em Porto Alegre. Enquanto aguardo na fila dos Correios da Oscar Pereira, me pergunto de onde vêm e para onde vão tantos veículos por tal avenida, leiga que sou no perímetro desta cidade. Parecem fugir de algo. Despacho um presente de aniversário para minha mãe e, então, decido subir a rua.

Poucos metros caminhados e já posso ter uma prévia daquilo que me espera: enxergo a primeira agência funerária. Na próxima quadra, avisto mais quatro dessas agências. A partir desse ponto a atmosfera da avenida já muda completamente. Não digo pelo fator de ritos fúnebres ali presentes, até porque a morte não me assusta, nunca assustou. A questão é que, assim que avisto o Cemitério São Miguel e Almas de um lado e o Cemitério da Santa Casa do outro, me sinto em outra cidade.

De repente já não está tão quente quanto antes, embora o sol ainda brilhe o bastante para ofuscar qualquer visão. Existe uma brisa fresca no lugar, mesmo que os galhos das árvores não se movam. Ali, onde o fluxo de pessoas vivas é instantaneamente reduzido a zero, talvez seja o lugar com mais humanidade em que já estive. Talvez as pessoas nos veículos fugissem dessa humanidade.

Gavetas e túmulos do primeiro quadro do cemitério | Foto: Fabiane Anjos

Resolvo entrar no Cemitério da Santa Casa e, num primeiro momento, parece mais um cemitério comum: um estacionamento vazio, uma pequena igreja, acesso ao columbário e às salas de velório. Viro à esquerda e saio de um cemitério comum para um com obras espalhadas decorando mausoléus e jazigos. O máximo que havia visto além de flores decorando a lápide de alguém foram figurinhas coladas em ossuários que guardam os restos mortais de crianças. Tudo ali me impressiona.

Exemplo de mausoléu construído no cemitério | Foto: Fabiane Anjos

Em linha reta há uma espécie de portal escrito “Revertere ad locum tuum”, que significa algo como “Volte para o lugar de onde vieste”. Se os bons cristãos estão certos, então realmente viemos da terra e retornaremos a ela.

Inicio uma caminhada em meio aos corredores e covas recém fechadas em que nem a grama ainda voltou a crescer. Jazigos datados de 1940 ainda bem preservados, sei que receberam visita pois as flores que começam a secar denunciam o cuidado da família. Estes sim parecem receber o zelo perpétuo que prometeram no momento em que selaram o chão com mármore.

Releitura de uma Monalisa do Cemitério | Foto: Fabiane Anjos

Imagino que a mensagem em latim daquele portal esteja assustando as pessoas ao forçá-las a pensar que, assim como o parente próximo, em breve, ela própria estará ali dividindo uma cova, um buraco no chão, com algumas palavras de lamento e, então, também será esquecida. Mas até onde os carros em alta velocidade na avenida podem escapar desse destino?

Enquanto passo por baixo da frase que supostamente causa terror em alguns, um pensamento grita constantemente dentro de mim: quem tem medo da morte? Avanço por mais quadros, dessa vez os túmulos são mais simples mas ainda suntuosos quando comparados ao Campo Santo do cemitério.

O Campo Santo fica depois de um segundo portal, este mais singelo que o primeiro. Para chegar até lá, passo por jazigos que me causam inquietação. A maioria da última década não tem nada além de ação do tempo: poeira por toda parte. Eles seguem um padrão, todos são brancos, alguns sem identificação, outros com placas simples.

Finalmente chego ao Campo Santo: o lugar em que são enterrados os corpos de pessoas de baixa renda ou dadas como indigentes. Aqui, tenho a resposta para minha pergunta: as pessoas não têm medo da morte. Elas têm medo de morrerem e serem esquecidas como tantos são esquecidos neste espaço. Três anos depois de cada sepultamento, o esperado é que não tenha mais nada além de ossos. Sem memória, sem visitas, sem o zelo perpétuo que algumas famílias são capazes de proporcionar aos seus entes.

Campo Santo | Foto: Cibele Barbosa

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