CRÔNICA

a trégua da rua

andressa pufal leonarczik
Casa e Rua
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4 min readFeb 3, 2023

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Rua Buenos Aires | Foto: Andressa Pufal

além do grito desesperado das cigarras e de alguns piares distantes de pássaros que se escondem nas árvores, nada se ouvia na rua. se via, porém, alguns atrasados com camisa amarela entrando rapidamente portões adentro, pra não perder nada do jogo. eu caminhava pela rua buenos aires — quanta ironia — pra ver o jogo do brasil nas quartas de final, na casa de um amigo. depois de quatro jogos e três vitórias (única derrota pro time de camarões, que não desanimou nem entristeceu brasileiro algum), o clima não podia ser outro: o brasil ia ganhar a copa. era fato consumado, só faltava acontecer.

o jogo daquela sexta-feira de dezembro era só mais um passo que nos levaria à vitória.

não tinha como não acontecer. tem cenário melhor do que a quentura do verão pro brasil ganhar uma copa depois de 20 anos? (eu sempre achei injustiça com o país do futebol (nós) que as copas do mundo eram no inverno. na verdade, é até um desrespeito. inverno não serve pra sentar na mesa de bar e tomar cerveja — o jeito certo de ver futebol pela tv).

o calor que eu sentia naquele quase meio-dia de dezembro não amenizou a solidão da rua quieta. aquela caminhada de 10 minutos foi a mais silenciosa que eu já fiz na vida. a rua, que apesar de ser naturalmente tranquila, estava mergulhada em uma mudez que só um jogo da seleção em copa do mundo pode nos dar. mas apesar de o clima fazer a sua parte, parece que a gente não fez a nossa. a única coisa que pintava o chão eram as flores dos ipês amarelos que entapetavam as calçadas. o que antes era coberto de tinta agora só denunciava o cinza do concreto. acho que a gente já foi mais feliz.

essa copa era a nossa redenção. era pra gente enterrar com uma pá gigantesca de alegria toda a infelicidade que ser brasileiro tem sido. era pra dizer que aqueles guris que esvaziam as ruas do brasil aos 17 anos como um produto qualquer de exportação têm na veia o sangue latino. o sangue do pelé, do garrincha, do ronaldo, do ronaldinho, do romário, enfim, de todos os meninos que fazem da viela, o campo.

essa rua hoje em dia não vira mais campo de futebol. hoje em dia ninguém mais deixa nela a tampa do dedão do pé descalço no asfalto, naquele cruzamento épico que mira a goleira de chinelos no chão. agora ela tá mais pra campo minado, como todas as outras. e que agora quando eu passo se afunda cada vez mais na tensão afônica. território de todos, ela tem seus 90 minutos de folga. as calçadas podem descansar de carregar em si os pés apressados e o asfalto pode comemorar que nenhuma máquina de lata colocará sobre ele suas toneladas (note que esse descanso só acontece de 4 em 4 anos. talvez, se fosse sindicalizada, aconteceria com mais frequência).

no descanso da rua, a lógica se inverte: o barulho vem de dentro das casas. sai tímido pelas janelas, vindo diretamente dos alto-falantes das tvs. já a rua, fica no lugar de apenas escutar. percebi que eu fazia parte do grupo dos atrasados de amarelo quando ouvi saindo das janelas de um carro de serviço de instalação de ar-condicionado as ondas sonoras carregando a narração do início do jogo. (outra coisa que não se veria no inverno. o calor de porto alegre é realmente insuportável, feliz é quem tem dinheiro pra instalar um ar-condicionado). apresso o passo. não posso perder o jogo. penso que meu amigo também tem um ar-condicionado que vai me abrigar do forno das calçadas, acentuado pelo apressar de passo.

chego no apartamento. subo até o décimo primeiro andar e entro na sala climatizada. lá o barulho reina. sobre o jogo, todo mundo sabe o que aconteceu. o silêncio ensurdecedor da buenos aires parecia um anúncio do que viria a acontecer depois do tempo regulamentar, da prorrogação e dos pênaltis. depois de horas de tensão, veio uma comemoração que foi embora muito cedo. vieram os pênaltis. e veio o vazio. o silêncio da rua invadiu janela adentro como quem quer voltar pra onde nunca deveria ter saído. a rua parece estar acostumada com a selvageria dos vai-e-vens, com o carnaval de pernas, com o peso dos carros, com o barulho da vida. ela não gosta de descansar.

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andressa pufal leonarczik
Casa e Rua

jornalista em formação pela UFRGS. repórter de cultura do Jornal do Comércio de Porto Alegre. escrevendo não-ficção, o rascunho da história