CRÔNICA

Disputa do verde com o cinza

Marina Carvalho
Casa e Rua
Published in
3 min readApr 4, 2023

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Créditos: Mateus Bruxel

Quando eu vim pra cá, tinha 4 anos. Meu pai dizia que a vista do morro da janela, de tão verde e alta, fazia o sentir na serra. Onde acaba a terra e começa o asfalto. Do meu portão, dá pra ver a floresta. Do portão pra dentro, a garagem. Quem passa por aqui, costuma comentar “não conhecia pra esses lados”, “deve ser bem calmo”.

Na rua de paralelepípedo que separa a floresta do meu portão, eu passeio com a minha cachorra. De tão calma, como sugerem, posso soltar a coleira e deixar ela explorar os limites do verde com o cinza. Mesmo idosa e cega, ela não se perde. Não dedica nenhum esforço para desviar dos raros carros que passam pela rua. Eles que desviem, afinal, enxergam.

Quem trava sou eu, que fica do portão assistindo tudo. Assisto aos vizinhos que entram e saem. Assisto aos cachorros da rua que passam se estranhando. Assisto ao estranho hábito canino de marcar territórios para os quais não vou mais voltar. Assisto ao verde e sempre me surpreendo que tudo aquilo é a vista da minha janela.

Dias desses, o movimento foi mais intenso. Dentro e fora dos portões. A rua desacordada ganhou faixas de protesto. Elas diziam: “Demarcação já! Retomada Gãh Ré”. No limite do asfalto com a floresta, existe uma grade que delimita um enorme terreno. Embaixo do morro. Aquelas terras são palco de guerra. Uma guerra silenciosa, esfomeada. Nossa forma de ocupar terras é mais dolorosa do que a urina dos cachorros.

Do portão pra dentro, já ouço os rumores do que se pode tratar. Basta silenciar do meu quarto que posso ouvir a conversa da dona Estela, aposentada cheia de tempo, que convence quem passa sobre o absurdo dessa gente que quer tomar a terra dos outros. “É coisa de gente da esquerda”. O verde está sendo disputado. Por um lado, um povo indígena que defende a área em preservação. Do outro, uma construtora que quer unificar os cinzas.

O assunto tomou os encontros dos vizinhos. Uma saída com o cachorro, na rua atrás do portão, tem a ocupação como pauta. Dois moradores levando seus lixos comentando sobre os rituais indígenas que podem ouvir das suas casas. Não ouvi todos os papos paralelos, mas os que chegaram aos meus ouvidos parecem não gostar dos novos vizinhos do bairro.

Quarta-feira é dia de faxina. A Josi é quem nos ajuda. Até ela, de outro bairro, já ficou sabendo do assunto. Disse que indígena não quer trabalhar. Reclamou da fumaça e do mau-cheiro. Mas ela nem mora aqui. Agora, os novos vizinhos já participam da vida do bairro. Sempre vejo alguns deles na praça.

Outro dia, em mais um passeio de rotina, a rua já estava movimentada. Repórteres e fotógrafos captavam a disputa do verde com o cinza. Virou assunto da cidade. Eu fui pesquisar. Afinal, a rua de trás nunca tem movimento.

Naquela semana, a cacica da tribo estava protestando com a boca fechada. Era greve de fome até que o verde não fosse entregue pro cinza. A grade ganhou mais cartazes. A rua, mais movimento. E a minha cachorra continua sem se esforçar para contorná-lo.

Acho que meu pai já não gosta mais daqui. Não pelos vizinhos novos. Talvez pelo movimento. Antes, ficou porque lembrava a serra. Agora, quer ir pro mar. Viver na praia, longe daqui. Quer azul.

Enquanto a disputa ainda acontece, a pauta do condomínio já virou outra. Hoje de noite todo mundo saiu de casa para se atualizar do novo acontecimento. Disseram que na rua de cima houve outra disputa. Dessa vez, mais emocionante, teve até morte. Quando envolve foto, quem não dá bom dia quando passa decide puxar conversa pedindo o registro.

No fim das contas, a guerra pode estar acontecendo no portão de trás da casa. Mas se não for uma luta compartilhada, vira mais uma fofoca de bairro.

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