CRÔNICA

Memória da que já foi

Gabriela Sardi
Casa e Rua
Published in
3 min readMar 28, 2023

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Curioso que chamamos a rua em que moramos de “minha rua”. É curioso porque se as ruas são de todos — assim dizem — então todas também são minhas. Ou então não há rua minha porque se as ruas são de todos elas não são somente de ninguém. Fecho parênteses. Não planejo escrever sobre isso. Vou escrever sobre a casa abandonada que havia na-rua-em-que-moro (ou minha rua). Foi demolida há uns três ou quatro anos. Eu a adorava, era minha preferida desde que sua equivalente da outra quadra foi ao chão.

Dela sobrou o terreno, com mato e uma árvore ao fundo. Para mim perdeu a graça. O mato que restou não é um bom mato (bons são aqueles em que a altura da grama não permite localizar os grilos, fazendo parecer que é a terra que entoa cri-cri). Também o banner da imobiliária, preso à grade posta rente ao limite da calçada, infertiliza qualquer atmosfera de mistério, qualquer fantasia de que se trata de um terreno abandonado, de ninguém, esquecido entre os novos Melnick e Cyrela Goldsztein.

Mas antes não: quando a casa existia a coisa era outra. Intrigava pensar quem havia vivido ali, quando morreu (já morreu?), como, de quê. Poder observar, ao longo dos meses, anos, a pintura azul se esvair, as vigas de madeira apodrecerem, o assoalho da varanda curvar-se. Era um clima soturno, de coisa intocada mas não parando de mudar. Queria poder ver, em vídeo time lapse, toda a existência da casa, da construção às ruínas, como uma fruta filmada da integridade ao bolor.

Melhor ainda seria se eu tivesse adentrado. Pulado o muro de ferro e tombado a porta de entrada. Meu ex-colega de escola, do alto de seus seis anos, fez isso. No meio de um temporal, ainda por cima. Depois disso ele virou meu namoradinho, pudera. Fato é que nunca entrei na casa. Ao menos, como que vingando minha falta de coragem, o destino me consentiu entrar no terreno, já sem casa. Eu estava indo ao dentista quando passei por lá, no meio de uma manhã. Havia vários homens e uma máquina daquelas de tirar escombro, também outra usada em demolições. Já não havia nada de meu interesse. Mas esperei um instante para ver se, por acaso e de repente, não aparecia algum sujeito do meio dos entulhos, dizendo que não tomara coragem de enfrentar o corredor escuro que levava de volta ao quarto, após levantar no meio da noite para pegar um copo d’água, então acabou dormindo na sala e perdendo a hora. Talvez aparecesse alguém vindo do outro lado da rua, contestando a demolição porque, afinal, só ficou fora alguns dias — madrugara jogando cartas na casa do amigo e resolveu ficar por lá mesmo. Mas qual: não veio ninguém. Nem quando da demolição e até hoje. Quem sabe algum dia apareça.

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