CRÔNICA

Minhas cartas possuem o mesmo endereço que as deles

Marihá Maris Maria
Casa e Rua
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3 min readApr 4, 2023

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Caixas de correios iguais, com cartas distintas | Foto: Marihá Maria

Da entrada de meu condomínio até chegar ao meu apartamento eu passo por outros vinte e um. Em muitos vejo apenas as portas, em outros as janelas e em poucos avisto os moradores. Apesar de compartilharmos uma de nossas informações pessoais mais importantes, o endereço, não compartilhamos mais nada. No máximo, às vezes, o espaço em um dos bancos do jardim enquanto esperamos, cada um, por um Uber que nos levará a um local desconhecido para o outro.

Em um condomínio de nove blocos e mais de uma centena de apartamentos, posso contar em minhas mãos aqueles cujos nomes das pessoas que os habitam eu conheço. Mas, de um número um pouco maior, através dos sons que escapam das paredes, eu conheço a música favorita para ouvir em um domingo a tarde. Pelo barulho que ouço dos passos nas escadas, conheço o horário que saem para o trabalho. Pelas repressões aos latidos que ecoam no corredor, conheço o nome de seus animais de estimação.

Moro no térreo e, através das janelas, todos que transitam por meu prédio são apresentados à visão de minha sala e de dois quartos. Inúmeros são os momentos em que cruzei o olhar com algum vizinho que observava o interior, reparando nos móveis, na decoração, em minha família. Mas eles não me incomodam, pois quando passo por outros apartamentos com janelas e portas abertas meu olho tende a procurar uma visualização rápida e singela do seu conteúdo. E assim, de alguns vizinhos, pela TV na sala de estar, conheço quais filmes gostam de assistir; pelas panelas no fogão, o horário do jantar, e, pelas estantes nas paredes, os objetos de interesses que colecionam.

Eu e eles possuímos as cartas endereçadas com a mesma rua e o mesmo número, com alguns as correspondências possuem também o mesmo bloco e com outros o mesmo número de apartamento. Mas o que compartilhamos acaba aí. Dentro de cada espaço, em quatro paredes, há um lar diferente. Mesmo que os endereços sejam tão fisicamente próximos, eles estão afastados. Em um conjunto residencial com mais de trezentos apartamentos, com o concreto dividindo cada um destes espaços e centenas de moradores em um único local, é fácil a manifestação do pensamento de que “sou apenas mais uma aqui”.

São as pequenas características captadas por meus sentidos que me fazem perceber a singularidade de cada habitante deste local onde convivo diariamente. Me atento ao cheiro do almoço preparado por meu vizinho de porta, ao som dos passos dos filhos de meu vizinho do andar de cima e às roupas penduradas no varal do meu vizinho de outro bloco. São elas que me fazem perceber a multiplicidade de vidas que me rodeiam e como cada morador possui o seu papel na construção do ambiente deste condomínio. Em suas vidas, nenhum é só mais um. Mesmo em uma cidade grande como essa, eu não sou apenas mais uma.

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