PERFIL

Mulher que respira luta

Leticia Menezes Pasuch
Casa e Rua
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10 min readApr 4, 2023

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Ceniriani Vargas da Silva, moradora do Assentamento 20 de Novembro. Foto: Leticia Pasuch

Ceniriani chega meio afobada para me atender, logo pedindo desculpas pela demora. “Estava no banho”, justifica. Seus cabelos pretos e longos, passando da cintura, estavam úmidos. A lateral esquerda da sua cabeça é raspada, com desenhos em zigue-zague. Enquanto sentávamos na mesa de madeira, encostada na parede do seu apartamento, para conversar, ela falava e, ao mesmo tempo, passava seu creme de pentear nos fios recém-lavados. Parece ser rotineiro que ela faça mais de uma coisa ao mesmo tempo. Ela veste a camiseta do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Usa óculos e batom vermelho nos lábios. Em uma das orelhas, um brinco grande com penas. No pescoço, um grande colar. Os dois acessórios parecem artesanais. As tatuagens em seus braços reforçam significados de quem é: mulher, mãe e lutadora.

Ela é porto-alegrense da gema. Filha de pequenos agricultores que vieram da fronteira com a Argentina — seu pai, Sebastião da Silva, guarani, e sua mãe, Cenira Vargas da Silva, do outro lado do rio Uruguai. Os dois viveram na pele o grande êxodo rural dos anos 80. Sem perspectiva de vida no campo, a juventude vinha para a cidade em busca de melhores condições. Com muita gente sem casa, surge o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, que ilustra a camiseta de Ceniriani enquanto conta. O casal chegou à cidade já ocupando. No Morro Santana se instalaram, onde logo chegaria a filha.

Em 1987, em um barraco de madeira de ocupação, ela nasceu. Não tinha água, luz e saneamento básico para lhe receber. Até hoje o acesso é precário, principalmente com a especulação imobiliária escalando o morro, mas um caminhão-pipa auxilia a levar água. Quando menina, buscava dia a dia água na bica, e a luz era gato.

Sua mãe era liderança tenaz. Presidente de associação e até de igreja. Trabalhava com artesanato até ações de distribuição de alimentos. Ceniriani cresceu em meio ao orçamento participativo e as demandas de organizações comunitárias para garantir direitos básicos. Observava diariamente obras de saneamento que faziam no local.

Ela participava também do bloco infantil do morro, na escola de samba Figueira. Descia pelas trilhas só com o fulgor do luar iluminando o caminho. O espaço de lazer, improvisava: com os amigos, jogava bola na rua com esgoto a céu aberto. “Para mim é simbólico, olho para essas coisas todas hoje e enxergo a falta de política pública, e isso é motivador pra seguir lutando. A gente sabe que é um direito”, reconhece.

No deslocamento para a escola, ela caminhava ao lado de lagartos na trilha. Hoje, com a retomada indígena Kaingang e Xokleng acontecendo no local, é diferente. “Dizem que os lagartos vão tomar sol na calçada. Porque o mato, levaram tudo”. No espaço da retomada, está previsto um empreendimento com mais de 900 apartamentos, junto com a destruição de uma mata nativa.

Na sua infância, o mato era tão grande que, para jogar bola, às vezes tinha de atravessar a faixa até o bairro do outro lado. Batia de porta em porta dizendo: “tia, deixa a gente jogar bola?”. Infelizmente, muitas daquelas crianças que cresceram e jogavam bola com Ceniriani, ela perdeu em função do tráfico de drogas. A comunidade cresceu, a política pública não chegou e a violência dominou. Quando ela assiste ao vídeo da sua primeira comunhão, encontra apenas dois sobreviventes. Eram amigos, vizinhos. “Inclusive uma menina que cresceu comigo, era usuária e foi atingida por vários tiros. Tinha dois filhos”, lembra.

Militância no cordão umbilical

Ceniriani cresceu no meio de manifestações sociais. Pode-se dizer que se envolveu nos movimentos por influência dos pais. Mas está no sangue. Passou de geração em geração. “Minha mãe, eu e minhas filhas”, diz a mãe de Dandara, 14, e Tainá, 8. Durante sua juventude, participou de muitos movimentos. Hoje, ela é coordenadora estadual do MNLM, presidente da Cooperativa de Trabalhos da Habitação e coordenadora do programa Jovens Multiplicadoras de Cidadania da ONG Themis, além de participar ativamente da campanha Despejo Zero e de tantas outras.

Com seu trabalho em voluntariados desde nova, descobriu as Ciências Sociais e, também, que existia Universidade Federal. “Há 20 anos, a Universidade não fazia parte da vida da gente. Compreendi que a universidade era muito cara, e meus pais não teriam grana pra pagar, então eu não poderia fazer”, conta. Mas, através de cursinho popular, conseguiu estudar e passar no vestibular, e foi a primeira da família a entrar em uma Universidade Federal, a UFRGS. Ainda não havia cotas. Mas Ceniriani pôde acessar as ações afirmativas da assistência estudantil. Sua bolsa de extensão era fonte de renda durante o período. Toda a sua trajetória profissional nas Ciências Sociais foi na educação popular, trabalhando com jovens e nas cooperativas habitacionais.

A casa de quem luta por casas

Hoje, Ceniriani, sua família e mais 12 habitam o Assentamento 20 de Novembro, na rua Barros Cassal, Bairro Floresta. Um assentamento é fruto de um processo que começa com uma ocupação, e a história dessa ocupação foi um dos episódios mais importantes que ela vivenciou na sua trajetória de lutas.

Tudo começou na esquina da rua Caldas Júnior com a Avenida Mauá. Foi ocupado um prédio, construído com recurso público, privatizado e vendido para uma rede de joalherias e ao crime organizado. Mas, no início de 2007, ela e as demais famílias foram despejadas por uma megaoperação. Centenas de policiais e bombeiros subiram de rappel no prédio, e helicópteros sobrevoavam o céu. Nove quadras foram bloqueadas e diversos ocupantes foram presos por desacato. Na época, não havia política assistencial para quem era despejado na rua. Após manifestações, foi negociada uma área ao lado do estádio do Internacional, na rua Padre Cacique. Lá, em uma casa abandonada que abrigava crianças e adolescentes vítimas de violência, foi o lar de Ceniriani pelos seis anos seguintes. Não tinha teto, nem nada. Por muito tempo, uma lona abrigava ela e Dandara, sua primeira filha.

Logo em seguida, veio a notícia de que o Brasil sediaria a Copa do Mundo de 2014, incluindo Porto Alegre. Para ser construído um estacionamento no local, novamente, outro despejo. As paredes caíram como peças de dominó. Antes mesmo da bola, quem levou o primeiro chute da Copa do Mundo foram as mais de mil famílias que habitavam o entorno do estádio. Algumas ainda nem foram reassentadas, dez anos depois.

No momento político, havia indicativos de que a prioridade de destinação das áreas da União seria para moradia popular. Quando começou o processo, foram criados grupos de trabalho para discussão. “Mas nós já tínhamos uma organização enquanto cooperativa”, diz Ceniriani.

A articulação era a nível nacional. Com a parceria da Confederação Nacional de Assistência de Moradores (Conam), foi pautado junto ao governo federal o prédio da União em que Ceniriani vive atualmente, no bairro Floresta. Abandonado há quase 50 anos, o prédio foi projetado para ser um hospital da Associação dos Ferroviários, mas a obra nunca foi concluída. A área ociosa, portanto, poderia servir de reassentamento para as famílias que estavam sem casa. A burocracia teve início em 2007 para tornar viável que um prédio executado para ser um hospital pudesse ser um prédio residencial. Porém, apenas a primeira etapa do processo levou quatro anos e seguiu em um ritmo cada vez mais lento, conta Ceniriani.

Mulher que luta, que ocupa

No início de 2013, Ceniriani colocou sua mochila nas costas e partiu para a ocupação. Seis famílias já moravam no prédio e se somaram à luta. Só se via paredes. Mas o sonho de ter uma moradia digna nenhuma retroescavadeira poderia derrubar. Por muito tempo, Dandara chamava as retroescavadeiras de “máquinas de estragar casas”. “Ela tinha medo de que as máquinas descobrissem onde a gente tava morando. Cada vez que a gente passava por uma obra, era assim”, relata Ceniriani. “Mana, eu não sei por que tem tanto prédio vazio, e tanta gente sem casa”, disse Tainá à sua irmã Dandara em um vídeo produzido recentemente sobre a história do “Assentamento 20 de Novembro”.

Em março de 2016, a ocupação recebeu a concessão do direito de uso do imóvel. Teve início um projeto de recuperação do prédio, aprovado pela Caixa Econômica Federal. Para Ceniriani, foi um momento histórico e uma conquista gigante. “Só quem vive isso sabe o que é não saber para onde vai. É uma área super valorizada, com toda a estrutura que não se constrói hoje em dia”. Os tijolos, maciços e horizontais, não se encontram mais em qualquer lugar, lembra Ceniriani. “A gente tem o grande desafio de colocar em prática tudo o que a gente defende como projeto de moradia habitacional, é moradia digna de acesso à cidade e geração de renda”.

O projeto, além de moradia, é subdividido em três eixos. O social oferece garantia financeira às famílias de baixa renda que têm dificuldade financeira; é planejado um espaço cultural anexo ao prédio, onde possam acontecer eventos, feiras e espaços de convivência comunitária. O eixo da sustentabilidade ambiental projeta instalação de placas fotovoltaicas e solares, reutilização de água da chuva e iluminação natural, além de horta orgânica e produção de alimentos sem veneno. Por fim, a dinâmica financeira com cooperativas de trabalho e educação, que vão da costura até a produção de alimentos e marmitas para auxiliar as famílias vulneráveis.

“O projeto é muito representativo, não só para o movimento, mas para todos que estão na reforma urbana”, fala Ceniriani. Ela lembra que grande parte das políticas de moradia popular costuma ficar em locais distantes do centro da cidade. “As pessoas garantem o direito à moradia, mas perdem o direito à cidade”, reflete.

Em 2018, estava tudo licenciado para iniciar as questões técnicas necessárias de engenharia e arquitetura. Mas, sob o crivo das decisões do governo do ano seguinte, o processo estacionou. “Estamos há quatro anos com tudo parado, vencemos dois despejos, burocracias de licenciamento de obras, aí mudou o governo”, diz. “Agora, a expectativa é fazer as coisas o mais rápido possível. Mas as licenças já venceram. A meta é garantir novos licenciamentos em seis meses”, projeta.

Agora, o prédio é articulado pelo MNLM e o Conam. Doze famílias ocupam os apartamentos, mas o projeto é para receber até 40. “O prédio em si é uma carcaça de obra abandonada. Tudo que tem aqui nós fomos fazendo. Instalação elétrica precária, de água, esgoto. Tudo foi no improviso”, conta Ceniriani. Até hoje, há um sério problema de pressão de água, o que incomoda Dandara na hora de tomar banho.

Nas paredes cinzas e cimentadas do prédio, que não veem uma tinta há décadas, grafites cheios de cores se destacam. O silêncio do lugar contrasta com o movimento dos carros que cruzam a avenida Farrapos para adentrar à rua Dr. Barros Cassal. Me pergunto como é viver ao lado de uma avenida tão movimentada. “É um caos”, responderia Ceniriani. No andar dela, o segundo, as paredes de tijolos têm uma única camada de tinta branca. Na parede da esquerda, em letras garrafais, se lê: “Quando morar é privilégio, ocupar é um direito”. A parte interior das letras são preenchidas com vermelho. Na parede ao lado da porta, há quatro pequenas estantes de livros. Entre elas, uma flor desenhada e as palavras: “O amor mora aqui”.

É março, mas a porta do apartamento ainda tem uma guirlanda de natal. E dentro dele, uma árvore ainda montada. A porta da sua geladeira é cheia de adesivos colecionados de manifestações. Entre eles, adesivos de letras que, unidas, formam “Dandara te amooo”.

Ceniriani, Tainá e Luke, o cachorro da família. Foto: Leticia Pasuch

Ceniriani mãe

Dois dias antes de Dandara nascer, Ceniriani estava em um ato na esquina democrática. A filha já era militante dentro da barriga. Nasceu em 2009, época da ocupação ao lado do Internacional. Seis anos depois, veio Tainá. As duas, coincidentemente, são de março, o mês da mulher. Por pouco, não nascem no dia 8. Dandara fez 14 anos no dia 12 de março. E Tainá, fez oito dia 1º. Dandara começou a frequentar os corredores da UFRGS com 23 dias. Na foto da formatura, Ceniriani posa com a filha ao lado. Toda a graduação foi com ela carregada em seus braços. “Trocar a fralda era uma aventura”, lembra. Mas diz que foi uma criança muito tranquila. Já Tainá, “vale pelas duas”. Nasceu escancarando o mundo. O nascimento de Tainá foi fruto do sonho de Dandara. “Ela queria muito uma irmã. E queria que nascesse no dia do aniversário dela, como um presente”, conta Ceniriani. Seu nome, inclusive, foi batizado pela irmã mais velha. No facebook de Ceniriani, há um álbum de fotos nomeado “pequenas militantes”.

Quando ia para a faculdade, contava com apoios, mas geralmente passava por dificuldades com a presença das suas filhas, principalmente Dandara. Lembra de uma professora que até a liberou das aulas à noite e permitiu que ela estudasse à distância. Mas não esquece de um professor que se recusou a aceitar seu trabalho de final de semestre. “Ele dizia que eu tinha muitas faltas, e que não era justo, quando na verdade eu estava em licença-maternidade. Nem precisava ir às aulas, estava indo só para não ficar completamente perdida”. Naquela época, a licença-maternidade era mais curta, de apenas dois meses. Já quando Ceniriani teve Tainá, durava um semestre inteiro.

As dificuldades de conciliar o trabalho com as crianças também foram marcantes. Ceniriani saía no escuro e voltava no escuro. Alguns dias, quase não via suas filhas. Ela observa que, nos movimentos de ocupações, a maioria das lideranças são mulheres. “Ser militante homem e ser mulher é completamente diferente. O homem vai e faz o que tiver que fazer. Já a mulher, para ir em uma reunião, precisa saber quem vai ficar com a filha, se vai ter comida, o horário de levar e buscar”, pontua.

Mas ela não tem o que reclamar do apoio que seu atual parceiro, Douglas, dá para ela e as filhas. Há 12 anos no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cursa História e é cozinheiro de mão cheia. “Cozinha muito melhor que eu”. Esperto, assim conquistou as crianças, de acordo com ela. “Ganhou as filhas para ganhar a mãe”, brinca. De manhã cedo, faz chimarrão e deixa bilhetinhos para ela. “Ele coloca alguma coisa amorosa. Às vezes é a mesma coisa, às vezes são coisas diferentes”, descreve Tainá.

Ceniriani não tem religião, mas acredita na intuição e nas forças superiores que estão com ela dia a dia. Hoje, ela é a personificação da trajetória de lutas dos movimentos de moradia. Ceniriani é mulher que respira luta. Que luta por casa. Que casa com a militância por direitos e pelo direito à cidade. A filha de Cenira, a “Ni”, para os mais íntimos, ama incondicionalmente, e vive pelas duas filhas. Faz várias coisas ao mesmo tempo, mas faz com maestria. E nunca abaixa a cabeça. Vestida de resistência, está sempre posta a batalhar para ocupar a cidade — e todo o espaço vazio.

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