PERFIL

O guia do túnel escuro

Melany Pereira
Casa e Rua
Published in
6 min readMar 28, 2023

--

Ele e os filhos gêmeos | Foto: arquivo pessoal

Azul da cor do mar, a escada de caracol levava para a casa dele que ficava no segundo andar. Sim, diferente do habitual, para ingressar na casa era preciso subir uma escada apertadinha de caracol. Lá em cima havia poucos cômodos, a cozinha, dois quartos e um banheiro. O suficiente para dois moradores, no máximo três. O quarto tinha uma decoração peculiar, um carpete de cor marrom junto de uma cama de tijolos no centro. Outra coisa que chamava atenção era seu banheiro, onde havia uma banheira de cor caramelo, talvez nunca utilizada. Na verdade, a casa do segundo andar nem era tão interessante assim. Mas, como o primeiro andar tinha se tornado tão habitual para quem frequentava a casa, subir os degraus da escada de caracol sempre gerava um certo fascínio pelo que se poderia encontrar. Lá embaixo localizava-se seu escritório de atendimento, o salão de festas e o quarto dos santos. Seus dias se passavam no primeiro andar. Em seu escritório, ou na salinha de atendimento, ele jogava búzios para estranhos e se conectava com os orixás. A cozinha estava sempre movimentada em dias de festa, no fogão as panelas gigantes já eram aquecidas para alimentar um batalhão. Do quartinho de santo sempre se ouvia o sino tocar, gesto que sinalizava a chegada de algum filho à casa. Eram muitos filhos, sete de sangue e uns vinte e pouco de santo. E claro, os inúmeros de consideração.

Onde tudo começou

Ingressou na religião negra ainda criança, aos 10 anos. Foi um pedido de sua mãe. Na época, Chininha era a mãe de santo da casa, que completaria 66 anos em 2023. Ela, mãe de três meninos e diversos agregados, comprou um terreno localizado no Jardim Botânico junto do seu esposo. A casa jamais ficava vazia ou em completo silêncio. Os três garotos, muitas vezes chamados de capetinhas, estavam sempre preparados para a próxima peripécia que iriam aprontar. Como o fogo colocado no porão da casa que resultou em chineladas e castigo para os três. Ele, o caçula dos três irmãos, foi o escolhido para seguir como Pai de Santo após o falecimento de Chininha. Ele, que era o filho mimado e acobertado por ela. Não poderia ser outro, tinha que ser ele.

Visto como uma entidade máxima, seu superpoder conectou-o com muitas pessoas. Vinham de longe, com dúvidas, em busca de uma solução e de um guia. Sem olhar a quem, ele sempre ajudou, não se importava com o fato de muitos não poderem pagá-lo. Era um entra e sai na salinha de atendimento. No sofá, aguardava o próximo ser que teria seu momento de escuta. Muito mais do que escutar, ele aconselhava. Suas palavras vinham como um acalanto para aqueles que necessitavam. Parecia que planejava cada sílaba, sempre expressava o que o outro precisava escutar. Diferente de muitos, ele não julgava. Poderia ser a situação mais extrema, como um viciado ou uma mentirosa, ele jamais julgaria.

Fumaça daqui, galinha dali e cânticos religiosos no fundo. A limpeza de final de ano se aproximava. Com sua chegada, a casa do primeiro andar ficava movimentada. O cheirinho de arruda no ar agradava aqueles que saíam com suas seguranças amarradas no braço ou na perna. Aos 52 anos, ele assumiu a gerência da casa, logo após o falecimento de sua mãe. No início, foi relutante com o título, mas sabia que seu caminho estava trilhado para isso.

Para além da fé ancestral

Ele não foi só Pai de Santo. Antes disso ele foi o motorista de ônibus, o ex-marido mulherengo e o pai nem tão presente. A presença nem sempre foi pauta de sua relação com os filhos, visto que ele sempre deu conselhos e apoio. A construção do carinho, amor e respeito foi muito bem feita por ele. Segundo os filhos, as palavras que o definem são: amigo, amor e um ser incrível.

Para ele, o verão era o momento mais aguardado do ano. Em uma viagem de quase seis horas para Torres, encheu o seu fusca e partiu. Levava filhos, sobrinhos e agregados, se parar para contar dava quase oito pessoas no carrinho de duas portas. Mas ele era isso, era casa cheia, carro cheio.No final o que importava era a alegria de todos.

Muitos foram os motivos imaginados para o fim do casamento. A juventude de ambos. A personalidade forte. A teimosia. E, claro, as brigas. Se conheceram na faixa dos 20 anos, ele motorista de bonde e ela babá. O casal de negros casou de véu e grinalda na igreja Santo Antônio, localizada na rua Luiz de Camões. Juntos, tiveram quatro filhos. A primeira e única menina do casal, o menino que levou o nome do pai e os gêmeos. Sim, uma família e tanto, daquelas que remete às propagandas de margarina. A relação durou 15 anos, mas ela não suportou suas traições. Fora do casamento, ele teve outras três meninas, uma de cada mãe, mas com nenhuma se casou. Alguns o julgavam, mas ele levava na esportiva e até ria do apelido de “mulherengo”. Talvez não se visse dessa forma, ou talvez sim. Por mais que tenha tido umas seis relações ao longo de sua vida, uma coisa é inegável:ele foi um homem que amou e foi amado.

O fim do túnel

Torcedor do Internacional | Foto: Melany Pereira

Torcedor do time dos negros, o Internacional, todo dia de jogo do seu time era sagrado. Tinha que ir até o Zaffari do Bourbon Ipiranga para garantir a cervejinha e a carne do churrasco. No caminho de sua casa até o mercado encontrava amigos e vizinhos, conversava sobre o possível placar e, com seu conjunto vermelho e branco, seguia. O fim do jogo nem sempre era como esperado, mas nada tirava sua alegria de assistir ao colorado. Se caso chegassem à final do gauchão, já organizava a festa na sua casa. Cada um com seu quilo de carne e seu fardinho na mão, iam se juntando na pequena garagem na frente da casa. Aquela mesma garagem já havia recebido diversas comemorações dele. Principalmente em agosto, mês de seu aniversário e do dia dos pais. Os vizinhos se enlouqueciam, talvez pelo barulho, ou talvez pela falta de convite daquela festa negra. Imagine, samba no último volume, fumaceira do carvão e a cerveja geladinha. Todos queriam o convite para seus eventos. E ele avisava: “pode trazer mulher, namorado, o que for, conto com tua presença!”.

Querido por muitos, ninguém era doido de ignorar uma ligação ou pedido dele. Até que, em 2020, uma pandemia cessou com os festejos de sua casa. Um vírus letal parava o mundo. Logo após seu aniversário, a notícia: apenas 6% dos seus rins funcionavam, seria de extrema urgência iniciar o tratamento de hemodiálise. O médico avisou: “será preciso algumas mudanças, principalmente na dieta”. Mas ele era teimoso, não queria largar mão das suas coisinhas. Era dia 20 de dezembro, todos da família reunidos para um churrasco. O telefone tocou. A notícia que ninguém esperava chegou. Ele partiu. Paulo Jaime Pereira da Silva, o caçula dos três irmãos, agora se despedia da sua casa e fora reencontrar seus pais e irmãos em outro plano. Ele que sempre disse que não se arrependia de nada. Foi feliz do jeito dele, amigo dos amigos e um amante dos filhos e netos. O guia do túnel escuro de muitos, teimoso na mesma proporção em que era coração gigante, agora se despedia para seu eterno descanso.

--

--